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De que se trata na psicose

DE QUE SE TRATA NA PSICOSE?

 

José Mário Simil Cordeiro[1]

Meu ponto de partida são os enigmas e impasses que o tratamento de psicóticos levantam no consultório. É preciso que se diga que a origem disso vem no rastro de minha formação psiquiátrica, tendo como clímax as incertezas instaladas pela decisão de encarar as interrogações próprias do lugar de analista. Até então, a paz proporcionada pelo saber médico me fazia crer na eficiência do raciocínio organo-clínico, no poder organizador do diagnóstico e na eficácia da intervenção farmacológica. Confesso que mesmo com esses instrumentos, restava dessa  prática uma certa desconfiança misturada com pessimismo e frustração por conseguir tão pouco, daí me ver cada vez menos organicista e um pouco mais psicoterapeuta.  Identifico aí, nesse mal-estar, a origem de um defeito de formação que nunca me deixou ser um verdadeiro psiquiatra: trabalhando num hospício secular onde a lei era o uso do eletrochoque, mesmo que fosse, na época,  por comodismo,  nunca consegui executar essas tarefas e as substituía pela palavra. A psiquiatria biológica me faz ver, hoje, que esse é um defeito sem cura, já que a fala nessas paragens foi completamente elidida.

Há cerca de 10 anos conheci R. e recebi todo o impacto de sua desorganização psíquica. Inteligência desconcertante, lucidez no limite da suspeição, ele veio ao meu consultório acompanhado pelo pai e dois irmãos. Vinham recomendados por um médico de outra cidade onde trabalhei e me deram um recado para que eu trabalhasse como “ego auxiliar”. Esse  recado era uma senha que tinha valor de diagnóstico: eu aprendera que só se trabalha como “ego auxiliar” nos casos de psicose e a técnica consiste em sustentar com o paciente uma relação de simetria imaginária, o terapeuta servindo de suporte egoico a partir do qual o paciente tentaria organizar-se. Acolhi com humildade a sugestão, embora o quadro que se apresentava à minha escuta a tornasse inútil: o sujeito estava ali em plena efusão psicótica, agitado, falava descontroladamente, tinha a convicção plena de que era alvo de complô armado contra ele pelo pai e por um tio, ambos figuras importantes no meio profissional e na política. O pai, angustiado, relatou que R. tentara se jogar  do sexto andar do prédio onde mora o tio e que seu comportamento e suas idéias estranhas tinham começado de súbito, sem nenhuma causa aparente. Pelo contrário, R. sempre fora um jovem brilhante, primeiro lugar na escola, campeão de capoeira e que vinha vindo muito bem no curso de Direito.

A primeira entrevista se deu nesse clima turbulento, mas já havia dados clínicos que autorizava qualquer psiquiatra que tivesse informações sobre semiologia fenomenológica a fazer o diagnóstico de surto psicótico agudo, tipo esquizofreniforme, e foi a partir daí que comecei a trabalhar. Instituí, primeiramente, um protocolo farmacológico clássico composto basicamente de antipsicóticos de perfil sedativo. Contra-indiquei internação hospitalar e propus acompanhamento terapêutico em meu consultório, no ritmo de duas sessões por semana. A partir daí pude observar e escutar melhor a rica produção de alucinações auditivas, vozes que comentavam seus atos, influência cósmica sobre seu corpo, convicção telepática de que seus pensamentos eram publicados, tudo isto acompanhado de uma agressividade verbal principalmente dirigida ao pai: este usurpara seu lugar e, em conluio com o tio materno, homem de grande influência e poder, tentavam arrancar-lhe a identidade, forçando-o a ir para direções que ele não queria. R.,  naquele contexto, era o epicentro de uma revolução universal  que começava na divisão de sua família e se espraiava pelo caos cósmico, cuja reorganização passava a lhe competir. Nisto ele se dizia só e se houve ali, nesse período de quase um ano de tratamento, um interlocutor na pessoa do psiquiatra, era para tirar desse psiquiatra uma explicação para a perplexidade em que se encontrava.  Não foram poucos os momentos em que R. saía de sua clausura onipotente para interrogar-me sobre o que se passava com ele e a resposta que obtinha – porque os psiquiatras dão respostas – era de que se tratava de uma confusão mental cujos efeitos haveriam de passar com os medicamentos. Havia nessa resposta a marca da divisão em que eu próprio me encontrava entre exercer o saber e o poder que a medicina me proporcionava de utilizar o diagnóstico como defesa contra o incompreensível do delírio e o cuidado em preservar o que poderia haver ali de tentativa de cura, já que eu lera Freud e ele assim considera a finalidade da produção delirante. No fundo, eu tentava praticar a famosa psiquiatria dinâmica sem, contudo, abrir mão da segurança proporcionada pelo efeito farmacológico. Essa história durou, como eu disse, quase um ano, até que a mãe de R. o retirou do tratamento, “para pedir uma segunda opinião”, embora eu supusesse que ela o fez porque eu havia sugerido que R. passasse a conviver com o pai, já que o casal era separado.

Quando Kraepelin, na virada do século XX, estabeleceu a grande síntese nosográfica das doenças mentais que se tornou um paradigma descritivo para a psiquiatria, ele tinha como fundamento doutrinário, como todos os grandes clínicos de sua época, o modelo organo-clínico. Dentre esses fundamentos, está a importância da evolução do quadro como um dos critérios diagnósticos da chamada demência precoce, nomeada depois por Bleuler de esquizofrenia, e que se constitui no enigma maior para a psiquiatria. Nos tempos atuais, que eu reputo de um “retorno a Kraepelin”, a psiquiatria biológica tem nesse dado um critério importante para o diagnóstico.  Em outras palavras, se os assim chamados sintomas persistem por um período de até 6 meses, com ou sem tratamento, estamos diante de uma verdadeira esquizofrenia. Esta é uma das padronizações diagnósticas que se forjou para uso exclusivo dos psiquiatras, com a finalidade de evitar a dispersão de critérios, em busca de um suposto cientificismo. De fato, essa padronização facilitou a vida dos profissionais que sonhavam com a famosa “resolutividade” da psiquiatria, considerada a partir daí um ramo pragmático das ciências médicas. É inútil falar do preço que se pagou por isso junto à própria história da psiquiatria, cuja riqueza é formada pelo esforço de grandes mestres da clínica em decifrar o fenômeno da loucura humana. Pois bem! Os sintomas de R. evoluíram para uma cristalização esquizofrênica.

Dez anos depois daquele nosso primeiro encontro, eu tratava de um assunto clínico com uma colega psiquiatra numa clínica quando ouvi novamente falar dele, ou melhor, ele manifestou a essa psiquiatra, com quem estava se tratando, interesse em “voltar a falar com o Dr. Simil”. Em princípio fiquei surpreendido, mas logo me lembrei da fala de uma colega psicanalista que me dizia que o vínculo com o psicótico, quando há, é para toda a vida. Deixei meu telefone, logo recebi seu pedido de entrevista e aqui as minhas questões começaram a surgir. Já na primeira entrevista, mesmo relatando o périplo que vinha percorrendo junto a vários psiquiatras, sua referência temporal era “aquele nosso encontro”, como se isto tivesse se dado ontem ou na semana passada. Eu não me lembrava mais de detalhes daquele atendimento, talvez porque estivesse preocupado em estabelecer para mim meu lugar junto a esse sujeito, no momento atual. É bom lembrar que ele continua sendo tratado farmacologicamente por psiquiatra e este fator foi importante para marcar um lugar de escuta. Diante de mim estava um jovem inteligente, elegante, postura e fala extremamente formais, quase afetadas, nada mais, entretanto, daquela turbulência de dez anos atrás, nada de alucinações, delírio persecutório organizado ou outras formações comuns em evoluções desse tipo. Pensei: – “Afinal, os medicamentos servem para algo, esse sujeito está psiquiatricamente  “compensado””. A partir daí, o que fazer a não ser dar-lhe a palavra?

R. sempre me pareceu um paciente diferenciado. Sua loucura, qualquer que seja ela, está marcada desde o início por um tom de rebeldia e criatividade que o fez, outrora, não manter distância do fenômeno essencial que o divide, chamado por Jaspers de “processo psíquico”, mas pelo menos tingir a formação delirante de uma certa certeza digna que se ancora numa tendência à abstração quase absoluta. Ele seria um adepto do pensamento universal, significante aliás recorrente em sua fala. Num dos vários poemas que tem escrito e com os quais presenteia o analista, fala de emoções oceânicas, sistemas planetários em fusão, buracos negros, poeira cósmica, galáxias em expansão –  tudo isto com uma marca de impessoalidade, como se as palavras e emoções fossem para ele apenas elos de uma cadeia infinita, uma amplidão cósmica, retrato do caos capturado por uma introspecção, um mergulho numa “extrovertida consciência”. Uma de suas palavras preferidas é “renascer”, que ele escande em diversos segmentos fonemáticos –  renasce, renascere, renascimento – como se com isto tentasse renodular significantes para refazer o nome próprio. Teoriza sempre sobre “seu ser”, que tem 3 dimensões:

1a) é a imposição, impor-se ao outro, impor-se na família, impor-se com os amigos.

2a) é a totalização, em que me vejo integrado ao universo.

3a) é a habilidade das palavras, que não precisa mais da imposição.

Noutro momento, falando de seu esporte preferido, a capoeira, fala das “formas arredondadas” e das “formas pontiagudas”: – “Naquelas (as arredondadas) eu realizo todo o peso do meu ser. Há aí harmonia, a mesma que há entre os planetas. É uma redoma. “Já as “formas pontiagudas” são a interação, a mesma que é dada pelas palavras, arma de ataque.

No compasso desse delírio, o analista escuta e participa. Incentiva o sujeito a escrever outros poemas, acolhendo simplesmente a produção de sua loucura. Num ponto determinado, entretanto, algo acontece: lendo com ele um desses poemas, olho-o fixamente e penso “mas este sujeito está completamente louco”, e a partir daí passo ao desconforto de me encontrar numa posição de “falsidade” ante aquela demanda de testemunho. Esse dado “contra-transferencial” me parece importante para marcar um dos impasses trazidos pela abordagem da psicose quando o fazemos não só a partir da experiência da neurose, como quando agregamos a isto o vício de compreender o discurso do paciente. Este último aspecto levou a fenomenologia de Jaspers, por exemplo, a classificar algumas psicoses como psicologicamente incompreensíveis. Lacan vai dizer que o que nos diferencia do psicótico é que este último leva radicalmente a sério o seu dizer, enquanto que na neurose contamos com o benefício da dúvida, com o mal-entendido próprio da palavra marcada pela castração. Lacan, se ao optar pela eficácia explicativa da investigação analítica aproxima a psicose da neurose é para fazer aparecer relações simétricas e oposições que permitirão arquitetar uma estrutura aceitável para a psicose.  Lembro que junto ao neurótico a máscara do analista é o contraponto de uma suposição de saber vinda do analisando. É o engodo próprio da estruturação da transferência e que deverá ser desfeito. Aqui, entretanto, estou diante não só de uma certeza que busca no outro apenas o testemunho, como também da única “arma de ataque” possível para aquele sujeito, que vê nas “formas pontiagudas” da palavra uma possibilidade de interação e de laço social. Porque, do fundo do seu ser, daquele lugar onde, como diz Freud, originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo, R. busca uma reconstrução. E este é um tema tão mais importante para ele quanto está fundado em sua história familiar: é a partir da separação dos pais que R. se considera o artífice de uma reconstrução não só  dos laços familiares perdidos como de toda uma harmonia cósmica onde ele identifica o  “âmago do seu ser”. Separados os pais, ele se vê às voltas primeiro com a marca de sofrimento que aí se fez, depois teve de se haver com sua própria formação profissional, continuando o curso de Direito, nos passos do pai e do tio, ambos poderosas e reconhecidas figuras nessa área profissional. É convocado, em certo momento, a trabalhar no escritório do tio e a assumir funções de grande responsabilidade. É por essa época que ele faz, então, o primeiro surto. A meu ver, deu-se para ele, nesta encruzilhada de sua vida, a confrontação com uma falha que deveria estar ali desde sempre: a falta de um significante que leva o sujeito a reconsiderar o conjunto dos significantes. Lacan assim o diz: “[…] se para o sujeito é impossível assumir a realização do significante pai ao nível simbólico, resta-lhe a imagem a que se reduz a função paterna, […] imagem que não se inscreve nunca numa dialética triangular, mas cuja função de modelo de alienação especular dá ainda assim ao sujeito um ponto de enganchamento”. No caso de R. há ainda um fator adicional, pois a imagem paterna captadora, reduplicada na figura do tio, por alguma razão não deixa lugar para a relação de exclusão recíproca, rivalitária, que permite fundar a imagem do eu na órbita que dá o modelo do outro. Daí o estado de despossessão primitiva do significante, experiência inefável e inalcançável pelo simbólico, fenda que daí em diante só poderá ser recoberta pelo remendo da reconstrução delirante.

As questões e impasses levantados pela condução da experiência de R. são complexas, mas principalmente duas delas me afetam mais proximamente, talvez porque eu pense que é na condução da psicose que a vertente terapêutica da psicanálise mais se sobressaia. Lacan diz que, na condução de uma análise com neurótico a cura vem por acréscimo, querendo dizer com isto que nela o que importa são as manobras que possam levar o sujeito à travessia de seu fantasma. Não creio que isto valha para a psicose. Pelo contrário, penso que deveria haver aqui um empenho maior em acompanhar o esforço que o psicótico faz por construir uma compensação aceitável ao seu estado radical de desposessão significante e isto ele o faz longamente na vida “por uma série de identificações conformistas a personagens que lhe darão o sentimento do que é preciso fazer para ser um homem”.[2] São as muletas imaginárias reconhecidas por Freud e Lacan como a única maneira desses sujeitos construírem suplência que os mantenham estáveis. Quando recebi R. pela segunda vez,  notei essa  característica enigmática de sua fala: ao mesmo tempo em que ele se utilizava de significantes comuns numa conversa rotineira, isso criava perplexidade no ouvinte, instalando uma barreira na compreensão. Ele se utiliza do código da língua, mas não consegue restabelecer conexões de significação que possam ser compartilhadas. É neste sentido que Lacan diz que o psicótico é um mártir do inconsciente, dando ao termo mártir seu sentido de testemunhar. O psicótico para ele parece fixado, imobilizado numa posição que o coloca sem condições de restaurar autenticamente o sentido do que ele testemunha e de partilhá-lo no discurso dos outros. Daí o caráter imitativo e caricatural de sua fala que faz dele alguém fora do discurso. Por não conseguir restabelecer o pacto com o outro, nem fazer uma mediação simbólica entre o que é novo e ele, o sujeito substitui essa mediação simbólica por uma proliferação imaginária.

Meu interesse, então, se voltou para esse traço da fala e da escrita de R. que me permitiriam recortar as questões do diagnóstico e da transferência. O que me leva a afirmar que se trata de uma psicose? Qual o tipo de vínculo que levou esse sujeito a me procurar 10 anos após um primeiro encontro e a continuar “trabalhando comigo”, como ele diz, há mais de l ano? Uma breve incursão pela relação do psicótico com a linguagem poderá lançar alguma luz sobre tais questões.

Em O Seminário, livro 3: as psicoses, Lacan diz que o psicótico está fora do discurso, mas não da linguagem e, a propósito do diagnóstico, diz que é preciso exigir a presença de distúrbios da linguagem para fazê-lo. Chama esses distúrbios de fenômenos elementares. No lugar da descrição psiquiátrica, na qual a análise dos fenômenos elementares repousa no caráter ideogênico de uma compreensibilidade primeira, na ligação das afeições e de sua expressão na linguagem, Lacan vai colocar aquilo que ele chama o próprio registro em que o fenômeno da loucura pode aparecer: o da fala. E falar para ele é falar a outros, o que é o mesmo que dizer “fazer falar o Outro como tal”, isto é, no registro de uma alteridade do Outro enquanto lugar compartilhado dos significantes. A palavra, então, por fazer intervir o terceiro, faz superada a rivalidade que está no fundamento do objeto: ela é sempre pacto, acordo, entendimento. Na dialética neurótica, o sujeito se fala com seu eu, há uma triplicidade indicada no fato de que o eu fala a um outro do sujeito em terceira pessoa.  O sujeito psicótico, por sua vez, ignora a língua que ele fala. Lacan vai dizer que no fenômeno elementar (a alucinação, por exemplo) o sujeito fala literalmente com o seu eu e é como se um terceiro, seu substituto de reserva, falasse e comentasse sua atividade. Como se trata, então, de um fenômeno de linguagem, será sempre a mesma força estruturante que está trabalhando num delírio, quer o consideremos em uma de suas partes ou em sua totalidade. Conclui, dizendo que um delírio não é dedutível já que reproduz sua própria força constituinte, isto é, o delírio é, ele também, um fenômeno elementar. Do ponto de vista formal, a linguagem delirante é uma linguagem na qual certas palavras ganham um destaque especial, uma densidade que se manifesta algumas vezes na própria forma do significante, dando-lhes esse caráter neológico tão surpreendente, uma forma de discordância com a linguagem comum. Este último aspecto foi o que me chamou a atenção na produção falada e escrita de R. Não é que ele sempre criasse palavras novas, neologismos, mas o neológico no caso estaria no fato de que, no nível da significação, deixava de remeter a outra significação para remeter à significação como tal, isto é, é uma significação que basicamente só remete a ela própria, permanecendo irredutível. Esses pontos de discordância com a linguagem comum têm em si, como vimos, como fenômeno elementar, sua própria força constituinte, mas marca também, para Lacan, aquilo pelo qual um sujeito entra plenamente no domínio da intersubjetividade; com Freud diríamos que é uma tentativa de cura porque busca restaurar investimentos objetais não constituídos; com R. dizemos que “é o esforço que se faz com habilidade, em busca de uma interação, usando as formas pontiagudas das palavras, armas de ataque”. Estamos, com esses argumentos, no campo da transferência psicótica.

O primeiro texto que R. me apresentou à leitura é uma espécie de fábula construída a partir de duas personagens que ele chamou “a águia e o girassol”, uma pequena e comovente historieta de um girassol que, cumprindo seu destino de buscar o sol, vai aos poucos fenecendo ante o olhar impiedoso e rapinante de uma águia. Esse texto está associado com o desenho feito por ele, por ocasião do primeiro surto, da mesma ave de rapina, com seu bico pontiagudo devorando filhotes em um ninho. Lembrei-me do Presidente Schreber, com seu poder delirante de, com o olhar, fazer o sol empalidecer. Freud interpreta essa crença delirante explicando ser o sol aí um símbolo paterno sublimado. Recorre, então, a autores da mitologia que atribuíam esse poder de encarar o sol sem se ofuscar somente à águia que, como moradora das mais altas regiões do ar, era colocada em relação íntima com o astro rei. Refere também que a águia submete seus filhotes a um teste, antes de reconhecê-los como sua descendência legítima: a menos que consigam olhar para o sol sem piscar, são arrojados para fora do ninho. É a prova ordálica, interrogação da origem, busca do pai. No caso de R., o pobre girassol não passou no teste,  já é o anjo decaído da mitologia judaico-cristã, expulso das hordas divinas talvez por ousar encarar o pai, o acesso a esse lhe sendo impedido pelo olhar da mãe.  A partir daí passo a estimulá-lo a escrever mais e a falar cada vez mais de seus textos e, a cada poema produzido, corresponde um argumento a mais em torno da ideia de reconstrução. Comparecem sonhos e o relato deles parece carecer daquele caráter de descontinuidade que Freud descreve entre os pensamentos latentes do sonho e seu conteúdo manifesto, fruto do disfarce propiciado pela censura. Por exemplo, sonha certa vez que está em seu quarto e que alguém o espreita por uma porta entreaberta. Acorda subitamente, levanta-se e vai conferir quem o estaria espreitando.  Um sonho como este teria o mesmo estatuto de realidade que o delírio, parecendo faltar nele os mecanismos operadores da simbolização – condensação e deslocamento – que fazem dos sonhos realizações disfarçadas de desejo. O que me intrigou, entretanto, é que pelo menos um desses sonhos não teve esse teor delirante. Certo dia, traz um poema: “Eu, você, nós; eu, tu, ele; no universo social, união, renascer”. Nas associações, um sonho: “estava numa casa em reforma, casa outrora frágil e decadente, hoje montada em sólidos alicerces de mármore e ferro”. O analista, bom neurótico e compreensivo, arrisca “mas essa casa é você, é sua metáfora”, e recebe nas sessões subsequentes um desfile de significantes da história infantil e da adolescência desse sujeito. De repente, rememora-se, e isto me fez perguntar se, há pré-história na psicose, no sentido de que o há na neurose. De fato, na neurose infantil há pontos de simbolização prévia de uma pulsão, pontos que são postos em ação quando do retorno do recalcado. Na psicose, o sujeito não consegue fazer essa mediação simbólica por faltar o operador que é o nome-do-pai. Lacan diz explicitamente que o psicótico perde a referência do “ele”, do terceiro.  O que aconteceu, então, para esse sujeito me trazer uma metáfora de reconstrução como esta?  Uma hipótese é de que possa estar ocorrendo, na transferência, não uma construção fantasmática impossível, mas o que Lacan chamou de “enganchamento numa alienação especular”, através do modelo da presença do analista. O fato é que a partir do relato desse sonho. R. integra em sua fala a “casa do sonho”, que de fato é a casa onde passou a infância, onde, no passado, “chorei, vivi, sofri. Ali fui feliz” e onde se deu a separação dos pais. Passa a haver para ele um “antes” e um “depois”: “[…] antes eu me via em todo outro, todos que passavam eram eu. Agora consigo ver o outro e com isto me vejo a mim mesmo”. Eu pergunto: migração do espaço da intrusão do Outro para o reconhecimento de si que resulta da exclusão desse outro? Pelo menos é assim que Philipe Julien, comentando Lacan, teoriza o necessário movimento de instalação de uma “paranóia estruturante.”

O psicótico não fala: é falado, diz Lacan. Por lhe faltar a função da palavra, ele se encontra como que à deriva nas malhas dos significantes. R., entretanto, diz: […] antes era eu e a adversidade, eu e a amplidão; agora me aproximo do meu semelhante e com isto consigo comunicar alguma coisa. Há agora um eu e você a partir do qual organizo meu mundo social”. Em outro momento, aponta as referências a partir das quais “a reconstrução do seu ser pode se dar: “há o contexto familiar, o escritório onde trabalho, os poemas que escrevo, nossa interação e a capoeira, tudo isto a serviço da reconstrução que possibilitará “interagir com habilidade”. Há indícios, então, de que essa “aproximação com o semelhante” e essa “nossa interação” são elementos da transferência, mesmo porque isto vem associado com o relato de um contato feito recentemente com uma amiga da adolescência que, há 10 anos, lhe dera um livro de Fernando Sabino chamado “O encontro marcado”, e foi justamente há 10 anos que houve um primeiro encontro com o analista. Se isto se confirma, se acreditamos não haver  exterioridade também numa análise com um psicótico, então está ocorrendo esse “enganchamento imaginário numa alienação especular” e  a questão que se recorta é qual o limite para esse trabalho.  Se não há possibilidade de mudança de estruturação senão pelo viés da suplência imaginária, do remendo, como diria Freud, a função do analista se esgota aí? De toda forma, o processo continua em andamento. R. preparou uma antologia de seus poemas, uma  encadernação que intitulou “Um texto, vinte e cinco poemas e um gesto de amor”. Em torno desta pequena obra fala-se da “reconstrução do ser” de R., tendo a “casa do sonho” como fio condutor nesse labirinto. Nas sessões mais recentes ele começa a falar de um enigmático “papa negro”, o último a ser eleito pela igreja, que deixará de existir após ele. Suponho que começam a ser assentados  aí  os “sólidos alicerces de mármore e ferro” de uma construção delirante. Esta é, entretanto, apenas mais uma suposição do analista que, como bom secretário, encerra este relatório com o tom lírico da epígrafe da pequena obra de R.: “Dedico este livro não ao amor que tive, ao amor que tenho, mas ao amor que virá”.


[1]             Psicanalista, Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise-Brasília.

[2]             LACAN, Jacques. O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., p. 233.

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Ana Amélia

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