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ANOTAÇÕES SOBRE O ATO E O DISPOSITIVO ANALÍTICO

Dr. José Mário Simil Cordeiro

Quero iniciar minha intervenção confessando que para mim é um risco vir a Vitória apresentar comentários sobre qualquer tema a partir da teoria pura. Isto é uma forma de reconhecer que aqui circula o discurso analítico, mas é também uma maneira de recortar os limites da minha contribuição. No campo das confissões, então, posso dizer-lhes que, por razões pessoais, me considero uma espécie de filho temporão da psicanálise, mesmo estando envolvido com a leitura de Freud há mais de 30 anos. Esse dado, evidentemente, não invalida o que tenho a dizer. Pelo contrário, sua legitimidade partindo do vivido da experiência pessoal da análise, sinto-me autorizado a tingir a cinzenta aridez da teoria com o colorido aceno de verdade alcançado no percurso da cura. Esses clarões de verdade, restos de saber de cuja totalidade somos alijados estruturalmente, são esses pedaços de nossa saga pessoal conquistados na aventura de uma análise que constituem o núcleo de ser a partir do qual criamos a versão de nossa história. Se tal criação ficcional encontrar eco na teoria, tanto melhor, pois estaremos assim transmitindo a psicanálise no melhor estilo da doutrina; se tal eco não surgir, pelo menos fica como ensaio, outro momento da insistência que todo analisante deve cultivar na direção da verdade.

Minha reflexão, então, sobre o ato e sua relação com o dispositivo analítico e a transferência parte da discussão surgida num grupo de estudos que coordeno, a partir de uma afirmação de Freud sobre a transferência contida no pós-escrito do “Caso Dora”. Ele afirma ali que o dispositivo analítico não cria a transferência, mas a revela, dando a entender que o fenômeno em questão está ali desde sempre. Essa concepção da transferência como a repetição, na atualidade, de padrões infantis de escolhas objetais é o núcleo a partir do qual Freud vai conceber o amor de transferência como a cópia de um amor antigo, admitindo que é próprio de todo enamoramento repetir modelos infantis. Isto não o impede de reconhecer nessa experiência amorosa seu caráter de autenticidade. É interessante observar que nesse texto Freud refere-se a transferências, no plural, talvez reconhecendo, nesse momento, a idéia plural, já contida na Traumdeutung, de deslocamento de valor psíquico, transporte, substituição de um lugar para outro e, no caso da inclusão em um dispositivo de tratamento, das idéias de afinidade, influência hipnótica, transposição afetiva, etc. Na própria exposição do Caso Dora, Freud utiliza o termo primeiramente no sentido de deslocamento de afeto ou valor psíquico de um ponto do corpo para outro, para, finalmente, inaugurar a concepção de que a transferência se dá no dispositivo analítico, incluindo em sua dinâmica a figura do analista. Se, como Ferenczi, Freud concebeu o plural da transferência como existindo em todas as relações humanas (relação médico/paciente, professor/aluno) e sua natureza amorosa com suas variantes de ódio, será recortando sua utilidade como instrumento no processo de tratamento que ele dará a ela um estatuto de conceito fundamental. Colocando entre parênteses a evolução do conceito e sua aplicação clínica dentro da obra de Freud e as variações no pensamento de analistas pós-freudianos como Melanie Klein, Bion, Winnicott,etc. pretendo comentar os impasses no percurso do conceito e sua aplicação, partindo da criação lacaniana do conceito de ato analítico. Trabalhando com essas aproximações, pretendo apenas melhor compreender a efetividade de tais concepções, quando aplicadas à práxis analítica muito menos como experiência terapêutica do que como formação do analista. Daí o acento a ser dado à idéia de um dispositivo analítico onde transferência e ato nodulam sua operatividade.

Quando se pensa a formação do analista, é preciso levar em conta a disparidade de concepção que Lacan introduz, rompendo com uma tradição da IPA que organiza a formação do analista a partir da idéia de instituição espontânea estudada por Freud em Psicologia de Grupo e Análise do Eu. Nesse texto Freud concebe a instituição como um ajuntamento de elementos diversos unificados por um atributo comum, uma identidade. A identidade profissional está incluída nos esforços das Sociedades de psicanálise de responder às difíceis questões de qualificação e reconhecimento dos analistas, das relações de poder e autoridade e a incidência da transferência sobre essas questões. Nesse contexto, a formação do analista é sempre tributária da resposta institucional a essas questões. O livro de Annie Tardits traz alguns esclarecimentos a esse respeito. Ela constata que Lacan tentou subverter a resposta da IPA ao pensar a formação do analista bem perto do sujeito que pode advir da cultura das formações inconsciente, levando em conta não só o sujeito como efeito de linguagem, mas também o objeto que causa o desejo inconsciente. Lacan mais do que nunca, ao falar de psicanálise em intensão, recorta a experiência analítica como uma “experiência disposta” da cura, vendo nela um “dispositivo cujo real toca no real”. Ali onde a fantasia inclui o objeto como possível complemento do sujeito, fixando o desejo e orientando-o na via do desconhecimento, a cura confronta com o impossível dessa completude, com o objeto enquanto perdido, com o ser enquanto faltante à imagem e ao texto. É neste sentido que ela é um dispositivo, lugar e tempo de um confronto do sujeito com esse impossível constitutivo do humano. Ao mesmo tempo que recorta como tal a experiência da análise, Lacan vai abordá-la pela disparidade subjetiva que na transferência faz objeção à tradição analítica de uma intersubjetividade no processo da análise. Com a lógica do sujeito e elucidação do objeto a, ele pode precisar como o analista deve sustentar o engano de um endereçamento ao sujeito suposto saber, comprometer sua presença para operar como um objeto trazido no semblante, causar o desejo do sujeito contra a fantasia em que o analisante o alojou. Para a autora, é neste ponto que reside o real do dispositivo com o qual o analista deve se orientar.

A contribuição de Renata Vescovi em seu recente texto “Formação do analista: considerações sobre o ensino e a transmissão da psicanálise” traz elementos de interesse. Acompanhando Lacan ao conceber a experiência analítica como um dispositivo, ela recupera, através dele, as concepções de Kirkegard e Montaigne sobre o significado da fé e da crença, mostrando suas diferenças e sua dialética na lógica da condução da cura analítica. Ter fé no sujeito suposto saber é subjetivar o saber inconsciente ao lhe supor um sujeito numa proximidade com a crença num Deus ou num Outro que saberiam da verdade do nosso ser e teria o poder de solucionar nosso sofrimento, apontando as saídas das armadilhas e do sofrimento que o sintoma nos impõe. Esta é uma idéia que traduz com muita fidelidade a concepção de Freud da transferência como um artefato necessário a uma análise, um artefato sem o qual nenhuma análise é possível. Tributária da dúvida, entretanto ( estando implícita na fé em Deus, por exemplo, a possibilidade de sua não-existência ), a fé traz essa ambiguidade aplicada à transferência como suposição não só de um sujeito, como de um saber no Outro que responda ao enigma do nosso desejo. Essa dúvida implícita na fé nos convoca ao que Annie Tardits chama de ateísmo de método, o sujeito suposto saber estando fadado ao desaparecimento, o Outro aí implicado fadado ao desvanecimento. Não cremos mais nesse Deus que nos protege e nos dá sentido e amparo. “Não tenho mais nada a dizer ao meu analista, ele não sabe mais nada de mim ou de meu desejo, estou, de agora em diante, entregue a mim mesmo, fé e dúvida desaparecem ante o meu turbilhão pulsional”. Destituição subjetiva? Mas o que vem depois? É possível viver sem esse Outro tão caro a mim desde meus primórdios, voltar ao desamparo original a partir do qual me constituí como sujeito? Se aceitamos a denominação de destitutição subjetiva dada por Lacan a este produto de um percurso de análise finalizada, haveremos de compreender tratar-se aí também de uma profunda modificação da posição do sujeito ante o desejo do Outro, uma transformação que se dá no âmago do seu ser. Daí as escolhas eventuais por um sentimento de entusiasmo ante o fato de me haver livrado de um Outro que me tiranizou por toda a vida ou pela melancolia resultante de um aprisionamento a uma nostalgia mortificante ante uma perda inaceitável. Neste sentido, o final de uma análise pode se constituir em um impasse.

A crença, por sua vez, para Montaigne “resulta do domínio da experiência e constitui-se de convicções não fundadas racionalmente que modulam a conduta humana”. Para ele, segundo Vescovi, “para constituir uma crença é preciso idéias humanas, simplesmente idéias humanas que penso segundo eu mesmo e não segundo o que acredito a partir de Deus”. O filósofo nos esclarece que para crer é preciso separar-se da dúvida e da fé em um Outro, no caso Deus. Está, então, implícita em sua construção da crença a subversão da fé no sujeito suposto saber. Aplicado ao dispositivo analítico, é o ato analítico que promove essa subversão da fé em crença, promovendo a passagem de analisante a analista. A dialética da fé e da crença assim colocada nos retorna à questão da natureza do ato e suas conseqüências para o final de uma análise.

No Seminário, livro XV, sobre o ato analítico, Lacan é claro quanto a essa dialética, ao colocar o ato do lado do analista e, do lado do analisante, um “fazer”, uma tarefa de analisar-se, submetendo-se à contingência da falta-a-ser, entregando-se à possibilidade de perda do ser, ao pensar. Trata-se, evidentemente, do pensar com as leis do inconsciente, as leis da associação dita livre por Freud, mas que não visa a outro objetivo senão, sob transferência, dirigir-se à verdade do seu ser, de sua sexuação. Esse “fazer” do analisante não é, então, sem a transferência, ocorrendo, portanto, no registro da fé no sujeito suposto saber. O que parece interessante interrogar é o que do ato provoca essa suposição, pois nela, como vimos, está implicada a fé de que há um saber a ser revelado e de que há um sujeito que conhece esse saber. Desde cedo, em seu ensino, Lacan discute a questão do estatuto do inconsciente que, para ele, não é um problema ontológico (portanto, de ser), nem tampouco gnoseológico (portanto, de conhecer). Para ele o estatuto do inconsciente é ético no sentido que Freud dá à pulsão de um “querer satisfazer-se, querer manifestar-se”. Já no capítulo II, do Seminário, livro II, de 1954 e estabelecido por Jacques Allain Miller – que trata da relação entre saber, verdade e opinião verdadeira – Lacan contesta uma concepção do inconsciente como um depósito de reminiscências, ao comentar a demonstração socrática no diálogo platônico de Menon. Ele ali afirma que a partir do momento em que uma parte do mundo simbólico emerge, ela cria seu próprio passado. Para ele, é um erro pensar que aquilo que a ciência constitui por intermédio da função simbólica está aí desde sempre. Essa é justamente a ilusão própria da posição do analisante, que constitui a suposição de que o saber está aí, em potência, e de que existe um sujeito que conhece esse saber, no caso, o analista. Em seu texto de 1960 “Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano”, Lacan acaba com o erro de dar ao inconsciente o estatuto de existente desde sempre, antes de sua nomeação por Freud. Será, no entanto, no seminário do ato que ele abordará o inconsciente como verdade e não como saber. Para ele, o ato nos conduz à interrogação do que falha na cadeia significante e se assenta nesse ponto em que a verdade se revela impotente para dar conta da diferença sexual.

Esse aspecto é importante por trazer à discussão o lugar do ato no dispositivo analítico – que, como vimos, está do lado do analista – e seus efeitos sobre a posição do analisante. Está contida aí a idéia de que o ato é uma estrutura em que o objeto é ativo e o sujeito subvertido. Quando pensamos o que praticamos numa análise como ato analítico, partimos da constatação de que ela é um dispositivo de processar a transferência, não havendo aí nada de natural, sendo um artefato simbólico tributário da idéia de criação que desemboca numa subversão do sujeito. Queremos com isto focalizar a definição que Lacan dá do ato analítico como um ato de criação do qual resulta uma transformação do sujeito – a passagem analisante/analista. Lacan se utiliza de um exemplo histórico para ilustrar como um ato não representa nenhuma ação, mas se mede por coordenadas simbólicas. Ele fala do momento em que César atravessa o Rubicão, riacho que demarcava os limites geográficos da República na Roma antiga. Seu gesto de atravessar, com um simples salto, esse riacho, correspondia a ultrapassar essas coordenadas. Era uma passagem que significava transgredir as leis da República, mudando a posição de César ante essas leis, estabelecendo um antes e um depois da travessia. O exemplo utilizado por Lacan introduz um paradoxo e uma aparente contradição, pois o ato de César de transgredir e desafiar as leis da República pressupunha o reconhecimento dessas leis, desse Outro que as estabelece. Neste sentido não há ato sem o Outro. Como compatibilizar esta compreensão com a afirmação de Lacan de que o ato é sem Outro, isto é, de que no ato não há Outro nem sujeito? Se não há Outro nem sujeito, é porque nesse instante pontual o sujeito, até então ancorado na fé e na suposição de um saber, é daí desalojado, destituído, destituição que não é outra coisa senão uma transmutação de lugar. Penso que é da morte do grão em que se constitui o sujeito suposto saber que germinará o “em-si do objeto a que, nesse término, esvazia-se no mesmo movimento pelo qual o psicanalisante cai, por ter verificado nesse objeto a causa do desejo” (Lacan, 1969). É levantando essa questão que Lacan inicia o resumo do seminário do ato analítico escrito em 10.6.1969. Começa afirmando: “O ato analítico, ninguém sabe, ninguém viu além de nós, ou seja, nunca situado e muito menos questionado, eis que nós o supomos a partir do momento eletivo em que o psicanalisante passa a analista” (Lacan, 1969). Logo em seguida dirá que “ele remete ao em-si de uma consistência lógica, se é possível dar sequência a um ato tal que, em seu fim, destitui o próprio sujeito que o instaura”. Logo em seguida perguntará “Será que o psicanalisante, ao término da tarefa que lhe foi atribuída, sabe “melhor do que ninguém” da destituição subjetiva a que ela (a tarefa) reduziu justamente aquele que lha ordenou?”. Graciela Brodsky em sua “Short Story” dirá que a resposta final que Lacan dará à questão de como se obtém a destituição subjetiva, a subversão em que se constitui o fim da “falta-a-ser”, a conquista de uma afirmação do “sou” diferente daquela oferecida pela fantasia – essa resposta não estará no seminário do ato, mas no “sou” via sinthome. Para ela, o seminário do Ato, iniciado 30 dias após a apresentação da “Proposição de 9 de outubro de 1967”, foi também uma interpretação de Lacan à comunidade analítica constitutiva da EFP, que teria inicialmente dado um “não” à sua idéia do passe. Nesse Seminário, uma primeira adaptação do quadrângulo de Klein vai servir de demonstração de como numa análise se dá o percurso no qual a posição do sujeito será subvertida de uma alienação original até o momento da destituição subjetiva, que ele descreverá como um impasse. A esse primeiro quadrângulo ele superporá um segundo, onde demonstra a lógica do dispositivo do passe, dispositivo encarregado de apurar a legitimidade desse momento crucial de passagem analisante/analista. do “só-depois” da destituição subjetiva, Será nossa tarefa acompanhar Lacan nesse trilhamento, em busca da decifração desse enigma…

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Ana Amélia

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