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Notas sobre o delírio e o delirar

NOTAS SOBRE O DELÍRIO E O DELIRAR

 

[1]Dr. José Mário Simil Cordeiro

Quando se tem como finalidade estabelecer uma interlocução com artistas, supõe-se que o tema do processo de criação tome conta da cena, o que de alguma forma me possibilita fazer algumas reflexões a partir principalmente da clínica das psicoses. Os psiquiatras e os psicanalistas estão em seu métier quando falam do assunto da loucura, mas discutir esse assunto com artistas é esperar receber deles alguma luz nova a partir de sua experiência do ato de criar, o que já posiciona loucura e criação num mesmo patamar. O ditado popular diz que de médico e de louco, cada um de nós tem um pouco. Minhas notas, então, vão buscar baralhar o ditado, deslocando o louco e o médico, ou o cientista, até a seara do poeta e ver se aí, num ponto comum do processo de criação, pode-se reencontrar o homem, agente e servo da linguagem. Isto vem ao encontro das ocupações do analista, pois Freud, no seu estudo de caso do Presidente Schreber, por exemplo, já assinalava pontos comuns entre suas construções teóricas e a convicção do delirante. Detectamos, então, no discurso do inventor da psicanálise essa modesta reverência ao indizível, a mesma que os poetas confessam cultivar. Se nas construções de algumas psicoses encontramos esse viés que interroga a verdade do desejo do sujeito, no contexto que tento circunscrever o que faria a diferença para o cientista, o poeta e o louco é sua relação com a verdade.

No campo da psiquiatria, a abordagem dos fenômenos das psicoses está ligada, queiram ou não, à perspectiva de cura. Pinel e Esquirol, por exemplo, traziam o sentimento de compaixão e lançaram as bases do tratamento moral ao darem aos loucos a dignidade de doença. A invenção do hospício foi só um aspecto de um amplo projeto científico de recortar o fenômeno da loucura em entidades nosográficas, para melhor abordá-las e curá-las a partir do modelo organo-clínico. Nesta perspectiva, a ciência psiquiátrica, por seu empirismo e as incertezas nele implícitas, funcionava no mesmo diapasão do senso comum, tanto é que um artista dessa época heróica, nosso Machado de Assis, através de seu célebre conto “O Alienista”, faz uma caricatura do método do alienista, numa metáfora bem-humorada da impotência do homem ante o enigma da loucura. A história da psiquiatria mostra que isso evoluiu até os dias de hoje numa continuidade só quebrada pela reverência de Freud à verdade do inconsciente. No rastro dessa ambição de saber da jovem especialidade médica prosperaram, por exemplo, os chamados tratamentos biológicos (malarioterapia, choque cardiazólico, choque insulínico e eletrochoque), cujos métodos só não eram mais cruéis porque inventados em nome da razão e da ciência. Essa invenção dos psiquiatras instalou uma tradição experimentalista que marcou a psiquiatria com uma certa aura de intolerância quanto à produção delirante, considerada como um epifenômeno deficitário de funções cerebrais alteradas. Felizmente, um pequeno salto qualitativo foi dado, com o patrocínio da filosofia, pelo método fenomenológico, cujos fundamentos baseados na empatia ensaiaram o deciframento dos fenômenos elementares das psicoses, dando a eles uma significação fundada na compreensão, o que, paradoxalmente, só fez empurrar o louco para o abismo da incompreensibilidade: o homem enlouquece quando delira, isto é, quando seu discurso não é mais compreensível. Isto quer dizer, também, que a relação do psiquiatra com a verdade não é a mesma do louco, mesmo que falem a mesma língua.

Um louco genial como o Presidente Schreber faz desse impasse seu tema predileto, ao criticar as pretensões de Kraepelin de enquadrar seu monumental sistema delirante na categoria da demência paranóide. Ele diz mais, na introdução do seu livro-testamento “Memórias de um doente dos nervos”: [i]“[…] Considerarei um grande triunfo de minha capacidade dialética se com o presente trabalho[…] eu conseguisse apenas um resultado: suscitar nos médicos uma sombra de dúvida de que talvez houvesse algo de verdade nas minhas supostas idéias delirantes e alucinações”. Para um delirante, esta é uma expectativa paradoxal, por supor um apelo ao reconhecimento do outro que desmente as concepções do delírio como um fenômeno deficitário. O apelo, entretanto, aí presente vai além desse reconhecimento, ao introduzir a questão da verdade na construção delirante, tanto é que um cientista como Freud foi suscitado por essa “sombra de dúvida” e, após ter dado sua versão explicativa dos mecanismos da psicose de Schreber, afirma [ii]“[…] A crença de que o mundo deveria acabar porque seu ego estava atraindo todos os raios para si, a preocupação ansiosa, num período posterior, durante o processo de reconstrução, de que Deus rompesse sua vinculação de raios com ele – estes e muitos outros pormenores da estrutura delirante de Schreber soam quase como percepções endopsíquicas dos processos cuja existência presumi nestas páginas, como base de nossa explicação da paranóia.” E conclui dizendo que competia ao futuro decidir se existe mais delírio em sua teoria do que ele, Freud, gostaria de admitir, ou se há mais verdade no delírio de Schreber do que outras pessoas estão por enquanto preparadas para acreditar. Mais tarde afirmará que a psicanálise foi bem sucedida ali onde a paranóia fracassou, mas nosso interesse é acompanhá-lo não em seus comentários sobre o fracasso do mecanismo de recalcamento, mas interrogar a partir dele que tipo de criação uma reconstrução delirante opera. A questão colocada desta maneira já parte de uma tomada de posição quanto à função do delírio que, para Freud e para os psicanalistas que o seguem, é uma tentativa de cura. O que se acrescenta aqui como enigma é se a estrutura de reconstrução de uma atividade delirante pode equivaler ao ato da criação artística, particularmente da poesia.

A interlocução de Freud com a arte, principalmente com a literatura, foi rica e profícua. Ele via os artistas como precursores da psicanálise e os textos literários como validando o método analítico. Afirmava que os escritores estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não se tornaram acessíveis à ciência. Esse conhecimento da mente é o mesmo que ele credita ao psicótico que, mesmo passando pelo crivo de uma dinâmica conflitual na qual estão incluídas as noções de defesa e recalcamento, teria um saber inconsciente e o expressaria “a céu aberto” numa atividade delirante, por exemplo. Esta aproximação do artista com o louco supõe essa modesta reverência de Freud ao indizível de que falávamos antes, uma espécie de reconhecimento antecipado dessa dimensão que Lacan chamará de real. O fato é que a clínica da psicose nos informa isto: na evolução de determinados quadros psicóticos, há um momento específico em que o sujeito se encontra perplexo, invadido e siderado por um sentimento inefável que o ameaça e mortifica, algo que nenhuma palavra pode conter, fonte muitas vezes de passagens ao ato imprevisíveis. Os psiquiatras deram muitos nomes a esse fenômeno – humor delirante, processo psíquico, momento fecundo, etc.-, o importante é que é a partir daí que o sujeito constrói algo, principalmente para dar sentido àquilo que não compreende e que o afeta. Trata-se de momentos de profunda inquietação, na qual o sujeito se vê premido a fazer escolhas e ele as faz geralmente recorrendo ao campo das palavras para ver se aí encontra expressão para o inexprimível. Acompanhando esses momentos dramáticos pode-se concluir não ser a psicose um simples fato de déficit ou desordem. Muito pelo contrário, o delírio é isto que Freud chamou de uma tentativa de reconstrução dos vínculos perdidos com os objetos, esse movimento de criação que Lacan concebe como algo prenhe das qualidades de exceção que marcaram tanto a personalidade como as obras de um Rousseau ou de um Joyce. Essa concepção devolve ao psicótico aquilo que Schreber reivindicava, isto é, o reconhecimento de que, na disparidade efetiva dos fatos psicóticos, pode haver criação e, sobretudo, verdade. É claro que tanto Freud quanto Lacan tinham lá seus sistemas a construir, eles tinham com os loucos uma proximidade calculada que os impedia de passar para o outro lado do espelho. Freud, por exemplo, se concedeu a Schreber um lugar na posteridade, foi por ter extraído da doutrina deste último a confirmação de suas teses; já Lacan foi mais longe, ao extrair da eventual atmosfera caótica da psicose uma estruturação metódica que nada deveria a outros atos de criação. Sobre isso, Colette Soler nos convida a compreender como o que se impõe na maioria das vezes nos fenômenos de anomalia ou deficiência da psicose pode também se desdobrar em efeitos de criação. Para ela “[…] pode-se, com efeito, conceber que a falha no simbólico que a foraclusão (do nome-do-pai) descobre se traduza, de um lado, em efeitos desorganizadores designados com o termo “perda de realidade”, mas que, por outro lado, funcione como um empuxe para produções inéditas. Elas nem sempre chegam ao sumo da arte, mas todas são o traço de que a foraclusão libera um efeito que podemos chamar de “empuxo à criação”. Resta saber de que criação se trata, pois nem todo louco goza desse privilégio só dado ao artista de nos transportar para bem perto do real, experiência a que alguns analisados só conseguem aceder depois de anos de trabalho. De toda forma, é intrigante estabelecer relação entre um fenômeno descrito no campo da patologia e o ato de criação artística.

No longo comentário do caso Schreber que constitui o Seminário, livro III, de Lacan, há uma passagem curiosa. Falando do delírio, diz isto: “[…] Há (aqui) um sentido de literário, que quer dizer simplesmente folhas de papel cobertas com escrita. (…] O longo discurso pelo qual Schreber nos dá testemunho do que ele se decidiu afinal a admitir como solução de sua problemática não nos dá em parte alguma o sentimento de uma experiência original na qual o próprio sujeito esteja incluído”. E conclui: “Schreber é um escritor, mas não é um poeta. Ele não nos introduz numa dimensão nova da experiência.”Para Lacan, há poesia toda vez  que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso. A poesia é criação de um sujeito assumindo um nova ordem de relação simbólica com o mundo” Experiência original, nova ordem de relação simbólica com o mundo, a essência da poesia é a equivocação e o atributo maior do poeta é subverter o senso comum. Schreber, então, não é poeta também por se encontrar aprisionado na vertigem imaginária que o impede de sair do desfiladeiro que o leva à significação única e petrificada de seu despedaçamento. Ele está na linguagem como mártir, testemunhando toda espécie de existências improváveis, mas “tudo o que ele faz existir nessas significações é de alguma maneira vazio dele próprio”. Em outro ponto do seu comentário, Lacan vai dizer que o sujeito comum é servo da linguagem porque ele se constitui nela enquanto desapossado de uma garantia absoluta que o marca com o desamparo. Sua relação com a verdade é necessariamente oblíqua, pois o campo simbólico que o constitui sofre dessa falta original que propicia apenas o seu semi-dizer.Por estes comentários, pode-se concluir que para Lacan o efeito de poesia é tributário da criação de uma nova ordem simbólica, através de uma dinâmica da equivocação e do fingimento.  Haveria, nesse esforço teórico de um psicanalista genial, a mesma verdade que os poetas ousam descrever em seus delírios de criação?

Através de um conhecido poema, publicado em 1931 e intitulado “Autopsicografia”, Fernando Pessoa toma a palavra neste debate. As duas primeiras estrofes dizem assim: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente.// E os que lêem o que escreve, / Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só a que eles não têm/”. É inevitável um estremecimento de emoção ao ler um poema desses, talvez porque confesse uma trapaça que não é privilégio da criação poética, por ser compartilhada com o leitor. Somos transportados, nessa cumplicidade, para um lugar novo onde uma dor fingida do outro toma ares de verdade em nosso ser e nos sentimos co-partícipes do mesmo desamparo. Esta é a virtude do poeta: sofre por nós e nos dá acesso, por procuração, ao nosso sofrimento, sem que para isto precisemos pagar qualquer preço, já que a dor não é nossa. O poeta, por sua vez, cura-se do sofrimento exercendo todo tipo de licenças, habitando o mundo das palavras como um artesão, delas tirando os efeitos de sentido que nos conduzem o mais perto possível do indizível. Somos gratos a ele não só por nos poupar da angústia, quando a suaviza e dilui na beleza de seus arranjos, mas também por nos confirmar o benefício da incerteza, marca de nossa alienação na linguagem. Se é assim, como verificar na produção do psicótico essa chama divina da expressão, chave do mistério da criação poética, já que é de criação de uma certeza que se trata no delírio?

Eu dizia no início que o fio que orienta estas notas é meu interesse pela clínica psicanalítica da psicose. Penso particularmente num jovem cujo tratamento conduzo há alguns anos e que me desperta atualmente a seguinte questão: onde quero chegar, enquanto analista, na condução desse tratamento? Devo continuar insistindo, com meus sestros neuróticos, em explorar uma cena de alienação imaginária instalada na transferência em nome de uma eventual socialização desse paciente? Tudo isto porque sua produção literária, fruto de tática proposta pelo analista, se teve durante muito tempo uma função, mesmo que ortopédica, de cifração de gozo, torna-se agora um nó de configuração enigmática, característica que sempre esteve presente, mas que só agora é notada pelo analista. Retomo uma comunicação que fiz sobre este caso em trabalho anterior, onde relato um sentimento de inadequação que experimentei ao ler com ele os poemas que trazia. Enquanto isto ocorria, eu simplesmente concluía que estava diante de um sujeito completamente louco, cuja obra poética, instigada por mim, não passava de uma colcha de retalhos sem sentido, por carecer dessa dialética do fingimento presente na linguagem comum. Eu tinha em mente uma constatação de Lacan de que o psicótico está fixado e imobilizado numa posição que o coloca sem condições de restaurar autenticamente o sentido do que ele testemunha e de partilhá-lo no discurso do outro. Estaria eu certo em continuar avaliando assim uma obra de cuja elaboração participei ativamente, enquanto testemunha de uma tentativa de reconstrução subjetiva? O fato é que, apesar do meu preconceito e de minhas teorias, esse sujeito construiu mais de uma centena de poemas, cuja temática vai desde a tresloucada viagem cósmica ( como neste exemplo de um poema chamado Pai: “No final, a ordem/Cósmica/E não a desordem humana.//Estrelas, galáxias,/Dimensões/Macro, micro Universos/Luz profecias, Filosofias, Uniões”,etc.) até singelas confissões amorosas  (“Nos seus olhos,/ o meu destino./Nos seus seios,/ o meu prazer.// Amar, amar,/ Para crer./ No caminho,/ O poder.// Como ir / Sem você?//  Quero o que quer,? O amor/ Renascer”.). Ele chegou mesmo a compilar uma pequena antologia, que tentou publicar e, até hoje, sua obra poética constitui  um dos pilares daquilo que ele passou a chamar “reconstrução da casa dos sonhos”, que, na verdade, é a casa onde passou primeira infância e onde “chorei, vivi, sofri. Ali fui feliz”. Se leio esses poemas e constato neles um efeito incômodo de impessoalidade, talvez seja porque meu olhar e minha escuta não estejam em sintonia com as crenças desse paciente. É esse o impasse do tratamento do psicótico: enquanto neuróticos, assistimos, como no conto de Guimarães Rosa,  à deriva de nossos pacientes na  terceira margem do rio apenas com nossos préstimos de filhos culpados, sem poder trocar de lugar com eles na canoa da doideira, porque, afinal, “ninguém é doido. Ou, então, todos” e é esta última possibilidade que nos impele a calcular o que o remanso do rio esconde de gozo insuportável. Resta-nos, então, as fugas oficiais dos rótulos psiquiátricos ou da compreensão psicológica. O fato é que meu paciente, com essa costura original de palavras que lembra uma colcha de retalhos, consegue capturar, se ouso assim presumir, a cota de gozo que o mantém, na transferência como na vida, orientado para uma direção que o faz dizer, por exemplo, que “a poesia (dos outros e dele próprio) e nossa conversa me mostram caminhos e assim vamos vivendo”. Se tratar um psicótico é também levá-lo a apostar na poesia, talvez haja mais criação no seu delírio poético do que pode supor nossas intenções terapêuticas. Que a generosidade dos poetas, na sua divina loucura, possa nos confirmar a suposição!…


[1] Médico-Psiquiatra. Psicanalista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise-Brasília.

[i] SCHREBER, Daniel Paul, “Memórias de um doente dos nervos”, Edições Graal, Rio de Janeiro, 1984, p. 140

[ii] FREUD, Sigmund, OBRAS COMPLETAS, Edição Standard brasileira, vol. XII, Imago

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