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Franz Kafka: um fora da Lei?

FRANZ KAFKA: UM FORA DA LEI?[1]

 

Dr. José Mário Simil Cordeiro[2]

RESUMO: Tomando como ponto de partida a obra “Carta ao Pai”, de Franz Kafka, o autor, utilizando-se das noções freudianas de “moção maligna”, sentimento inconsciente de culpa e dos conceitos de identificação, supereu e complexo de Édipo,  procura demonstrar, nas confissões autobiográficas da “Carta” e nos tormentos do escritor e dos personagens de sua obra, os lances de uma aventura humana que passam pelo embate entre pai e desejo, referidos ambos à dimensão subjetiva da lei – embate que cristaliza escritor e personagens num fora-da-lei  edípica, num fora-do-amor que ilustra uma experiência existencial concreta, transfigurada num paradigma universal de desamparo, ressentimento, resignação e culpa.

PALAVRAS-CHAVE: Kafka, fora-da-lei, supereu, culpa, luto, redenção.


Em sua correspondência com o escritor Stefan Zweig, Freud demonstrava sua admiração pela literatura em termos tais como “sua frase aproxima-se de tal forma do ser mais íntimo que parece tocá-lo” (Freud, 1920, citado por J.B.Pontalis e Edmundo Gómez Mango, “Freud com os escritores, 2012/2013, p. 201) ou então “o senhor consegue se aproximar tanto da expressão do objeto que os detalhes mais sutis deste último se tornam perceptíveis e julgamos apreender relações e qualidades nunca antes anunciadas pela linguagem”(idem, idem, pg. 201). Era desse lugar que ele avaliava o ato de criação literária, reconhecendo sua dívida com os escritores e julgando ter sido superado por eles em diversos pontos. É nesta direção que  quero introduzir, como matéria de reflexão, a complexa questão da interpretação de um texto literário levando em conta a vida do autor e sua relação com o ato de criação.  Particularmente com relação ao texto que comento, a  “Carta ao Pai” (Kafka,1919/1985/1997) de Franz Kafka, sabemos tratar-se de uma obra ficcional. Entretanto, sua  convivência com o pai lhe trouxe irreparáveis feridas existenciais, confessadas por eles em várias passagens de sua correspondência e de seu diário. A um analista caberia perguntar a que pai estaria dirigida essa carta nunca entregue a qualquer destinatário concreto: real, simbólico ou imaginário? Só essa questão já nos dá a margem de liberdade de lê-la a partir de nossa própria estória. No meu caso, essa  evocação  autobiográfica parte de um reencontro com um autor que marcou minha história pessoal num momento importante quando, na universidade, debatia-me com a leitura de poetas e prosadores que me abrissem saídas para um sofrimento absolutamente insensato. Transcorreu daí muita água sob a ponte, corregozinho do amor que o meu processo analítico soube transformar em manancial suficientemente eficaz para traduzir esse passado em texto, mesmo que tomando como pretexto a letra de um autor genial. Não é sem apreensão que me introduzo neste campo, reduzindo o pudor para expor intenções pessoais. Também é aí que a psicanálise dá alguma garantia de que, em certo ponto, nunca somos donos desta privacidade que tão esmeradamente tentamos guardar através de muitos mecanismos. Ressalto com isto a ideia de que a passagem do privado ao público, se pode se dar como conseqüência lógica de um árduo trabalho de elaboração subjetiva, pode ocorrer também no âmago do ato de criação de certos autores predestinados. Nestes, estados ou situações de desamparo, humilhação, desespero ou vergonha podem se transfigurar em redenção, transmitida muitas vezes como paradigma universal. No meu entendimento, autores como Kafka nos conduzem a exemplos de deciframento que reduzem muitos dos nossos temores, por nos confiar uma experiência de elaboração simbólica que podemos imitar com segurança. Aliás, não seria outra a função das grandes obras de arte: permitir que, através delas, possamos alcançar um sentimento de  libertação, cuja fruição nos custaria muito conseguir por nossos próprios recursos.

O limite de tempo me obriga hoje a apenas me ater a alguns aspectos do material colhido. Li algumas biografias, textos de críticos literários, trechos do diário íntimo a que pude ter acesso (cuja tradução, aliás, não parece ser muito boa), a consagrada trilogia constituída por “Metamorfose” (Kafka,1912/1985/1997) “O Processo”(Kafka, 1914/1985/1997) e “O Castelo” (Kafka 1922/2000), contos e outros escritos e, com mais detalhe, a “Carta ao Pai”, cujo conteúdo servirá de baliza para iniciar estes comentários. Tratando-se de uma obra fragmentária como a de Kafka e do fato de ele ter escrito em alemão, língua a que infelizmente não tenho acesso direto, é importante reconhecer o esforço editorial da Companhia das Letras e do professor Modesto Carone, cuja tradução esmerada, cheia de comentários, ajuda a esclarecer muitos pontos obscuros e até enigmáticos do texto.  Já a biografia escrita pelo amigo, confidente e testamenteiro Max Brod, a correspondência completa e principalmente as cartas a Felice Bauer, são tesouros a serem ainda garimpados, o que corresponde a uma viagem que certamente guarda muitas surpresas. Se chamo essa produção de Kafka e as referências a ela de “material”, não é só por vício semiológico do clínico, mas é antecipando que em minha leitura de sua obra proponho como ferramenta uma “chave”, sem a qual me  é impossível tirar daí qualquer ensinamento. Especialistas em crítica literária podem ver nessa ferramenta algo reducionista. Quando, entretanto, o próprio autor reconhece o caráter literário de suas confissões e queixas dirigidas a um pai concreto, embora imaginário, está sinalizando ao  leitor, que por acaso é psicanalista, que uma experiência existencial concreta pode se transfigurar, pelo talento de generalização da forma estética de um autor, num paradigma universal, aproximando-se daquilo que recolhemos na clínica, por exemplo, da experiência de constituição de um sujeito a partir de seu embate com o desejo do Outro. Em ambos os campos, em algum momento o pai entra no jogo e não será pequeno o deslumbramento do psicanalista quando vir desdobrar-se numa narrativa lances da aventura humana que passam pelo embate entre pai e desejo, referidos ambos à dimensão subjetiva da lei. Será, portanto, a partir da “chave” psicanalítica que ousarei, com a devida reverência, extrair dos tormentos do autor e de seus personagens – aqui erigidos a uma incômoda equivalência – as lições que enriquecerão muito mais meu próprio percurso pessoal e minha prática de psicanalista do que a já rica bibliografia sobre o autor e sua obra. Minha pesquisa não pretende acrescentar a essa bibliografia mais do que a experiência do exercício da leitura particular de uma narrativa genial.

Numa carta a Fliess, datada de 2.11.1896 (Freud,1886/1950, p. 316), Freud faz alusão a um sonho que ocorrera na noite anterior aos funerais de seu pai[3], no qual vê um aviso impresso, placar ou cartaz – um tanto semelhante aos avisos proibindo que se fume nas salas de estar das estações de estrada de ferro – no qual aparecia inscrito “pede-se fechar os olhos ou pede-se fechar um olho”, que ele condensa na frase pede-se fechar os/um olhos/olho” , interpretando que a frase no quadro de aviso tem um duplo sentido e em ambos significa “deve-se cumprir a obrigação para com o morto”, sentença que para ele abrigava também “uma desculpa, como se eu não a tivesse cumprido e como se minha conduta precisasse ser tolerada e a obrigação assumida literalmente”.  Freud conclui que o sonho seria uma saída para a tendência à autocensura que habitualmente está presente entre os parentes vivos de um falecido. Utilizando-se da leitura lacaniana, a psicanalista argentina Marta Gerez-Ambertin, em seu livro “As Vozes do Supereu” amplia a interpretação freudiana, propondo que ele, na interpretação desse sonho, estabelece uma premissa básica da culpa como uma tentativa de desculpabilizar o pai, de preservar seu amparo. Diz ela: “[…] se na teoria freudiana o pai tem ao seu encargo a custódia da lei e impõe limites ao acesso ao corpo da mãe, é porque às vezes sabe fechar os olhos – tal sua indulgência – para unir o desejo à lei. Indulgência do pai para que os desejos circulem como perda de gozo, ainda que se alimentem disso. […] Desse modo, fechar os olhos/fechar um olho alude aos deveres do pai e do filho. Se o pai pode fechar os olhos para unir o desejo à lei (indulgência), um olho, ao menos, mantém a vigilância e a reprovação; e ainda que o filho possa conceder seu indulto aos pecados do pai (fechar os olhos), um olho, ao menos é testemunha desses pecados”(Marta Gerez Ambertin, 1993, p. 22). Seu comentário alude aos “labirintos do pai” na edificação da lei simbólica e sua relação com o supereu. Para ela, no rastro, com certeza, de Lacan,  a tramitação do percurso edípico é uma equação complexa, que não está isenta das imperfeições da ambigüidade de sentimentos aí envolvidos. Retenho, para efeito de demonstração,  as dimensões da indulgência e do perdão como vetores do amor na sanção dessa lei, sem os quais estaríamos ante uma lei absoluta. Na teoria freudiana, a lei edípica é reguladora e sua edificação passa pelo registro do amor do pai, fonte de proteção e amparo. Nela, não  vige somente  o interdido, pois a mesma lei que proíbe é a que legifera as vias substitutivas de realização do desejo, mediante as formações do inconsciente.  Ocorre que nem tudo nessa lei é normalizante, desejo e lei edípica encontram seu antônimo em um gozo que, embora Freud não denomine como tal, assinala sua incidência como “culpa originária”. Se a lei normalizante, aquela que enquadra o desejo, é sempre paterna, há que considerar sua dupla face: de um lado exaltação do pai maravilhoso e de outro opressão do pai diabólico e maligno, numa alusão à noção freudiana de “moção maligna”, de “Totem e Tabu”.  Na dialética pai-filho, então, constituinte da lei simbólica, a dimensão do perdão do filho é o contraponto da indulgência paterna, ambos circulando no registro do amor, nisto incidindo exatamente sua incompletude e carência. Só o pai original, o urvater da horda, tem poder absoluto. A transformação em pai morto, que por ser simbólico legifera e pacifica, não consegue dissolver totalmente os restos desse invulnerável pai original, cujos ressaibos, para Freud, se apresentam na vertente cruel da consciência moral. Se na origem o pai é o objeto incorporado canibalisticamente – identificação primária por incorporação intrusiva – é pela identificação secundária, com sua encobridora sombra imaginária, que se recebe a contrapartida amorosa que dá ao enlace edípico ao mesmo tempo sua eficácia e seu malogro. É, portanto onde a lei edípica falha como reguladora, nessa hiância onde o amor fracassa em sua tutela, que é deixado como causa um resto de objeto estranho, improcessável e inassimilável à lógica das substituições significantes e onde não há circulação libidinal: é um além do simbólico que se ancora somente na identificação fundadora do sujeito. Minha hipótese é de que em Kafka e seus personagens esse enlace edípico carece de eficácia simbólica, permanecendo o sujeito aprisionado à tirania e ao imperativo de gozo dessa vertente cruel e maligna do supereu. Se interrogo no personagem Kafka essa dimensão do fora-da-lei, pretendo vislumbrar em sua miséria e desamparo um fora-do-amor que dá à sua narrativa a secura bela e intrigante de uma queixa que se quer apelo e busca, busca que é também um esforço desesperado de luto desse pai morto, visando à separação.

Numa anotação de seu “Diário Íntimo”, de 5/7/1916 (Kafka, 1938, p. 416), Kafka comenta a impossibilidade de aturar a vida em comum com quem quer que seja: “Sofrimentos da vida em comum. Extorquidos da incompreensão, da compaixão, da covardia, da vaidade, e apenas um corregozinho digno de chamar-se amor corre quem sabe nas profundezas da terra, inatingível a qualquer  busca, jorrando um dia pelo instante de um instante” . Denso como toda sua escrita, este mote inspira nossa hipótese de um rio quase seco no leito de amor de sua vida e obra. Logo no início desse longo apelo que é a “Carta ao Pai” (Kafka, 1919/1985,1997, p. 9), Kafka não deixa dúvida quanto à existência desse amor, na bondade do pai, mas como fundo inacessível, pois “nem toda criança tem a resistência e o destemor de ficar procurando até chegar à bondade” . Desde cedo, então, marcado pela fragilidade resultante de uma imposição paterna insuportável, só podia desfrutar do que lhe era dado com vergonha, cansaço, fraqueza e culpa, por tudo isto só conseguindo ser grato como um mendigo, nunca através da ação. Tudo desse pai lhe vinha como inclemência e não como indulgência. Além disto, era de tal forma irresistível a atração que o obrigava a viver sempre, de algum modo, no círculo mais íntimo, mais estrito e mais sufocante dessa influência, que desapegar-se desse circuito só era concebível “lembrando um pouco a minhoca que, esmagada por um pé na parte de trás, se liberta com a parte dianteira e se arrasta para o lado” .  Tragado, portanto, na intemperança de uma figura paterna cuja aparência expelia energia, ruído e cólera, restava à criança o sentimento de nulidade que o aprisionava sob leis que tinha sido inventadas só para ele e diante das quais não tinha escolha a não ser submeter-se como escravo. Se era assim que a última instância paterna acossava o sujeito como maldição, que bradava como mandamentos do céu,  restava a esperança, originada no pressentimento infantil e transfigurada no desespero do adulto de se libertar através da escrita. Mesmo aí, entretanto, libertar-se desse sentimento de família era uma tarefa interminável, uma ilimitada consciência de culpa  condenava-o, antes de qualquer perdão, a reparar os danos paternos herdados como dívida. Kafka tematiza esse  drama numa metáfora assustadora: “[…] às vezes imagino um mapa-mundi aberto e você estendido transversalmente sobre ele. Para mim, então, é como se entrassem em consideração apenas as regiões que você não cobre ou que não estão ao seu alcance. De acordo com a imagem que eu tenho do seu tamanho, essas regiões não são muitas, nem muito consoladoras e o casamento não está entre elas”(Kafka, 1919/1985/1997,, p. 68).                                                                                                                                                 Esta  imagem foi construída num contexto da carta em que ele falava da impossibilidade de aceder à experiência do casamento. Casar-se  era fundar uma família, acolher todos os filhos (como seu pai o fez), é o máximo onde um homem pode chegar, ascender à função paterna, um lugar máximo, colocado desde o princípio como inalcançável e aonde só se pode chegar por uma aproximação remota: “Daí, para aceder ao lugar máximo, não é necessário voar para o meio do sol, mas ir rastejando até um lugarzinho limpo sobre a terra, onde ele (o sol, o pai) brilha às vezes e onde é possível se aquecer um pouco.”  A partir da tematização do casamento e suas conseqüências, percebe-se que essa experiência  corresponderia, de um lado, a uma auto-liberação, de outro lado – e nisto reside o desespero  – equivaleria a uma identificação simbólica a esse Pai, mas isso é algo excessivo, “não se pode conseguir tanto assim”. A metáfora do mapa-mundi evoca esse acesso “a um lugar ao sol” como seara exclusiva do pai. Na fantasia de K. a igualdade que essa identificação traria seria libertadora para ambos, mas, para chegar a esse objetivo “tudo o que aconteceu teria de ser desfeito, nós mesmos teríamos de ser apagados.” Isto quer dizer que aceder ao lugar paterno enquanto identificação real ao objeto simbólico equivaleria à morte. Daí sua permanência na ante-sala da lei tão belamente descrita na parábola “Diante da Lei” . Essa parábola foi posteriormente incluída num longo diálogo entre Josef K. e o  padre que encarna uma espécie de oráculo no capítulo “Na Catedral” de “O Processo”. Ela reitera algo dito de diversas maneiras na Carta, esse aprisionamento de Kafka ( estendido a seus personagens )  a uma fora-da-lei simbólica – exclusão na qual o próprio pai se incluía, “o homem tão imensamente decisivo, [que] não atendia ele mesmo aos mandamentos que me impunha”–  aprisionamento que  o faz dividir o mundo em 3 partes: 1a.) onde eu, escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só para mim e às quais não sabia por que nunca podia corresponder; 2a.) o mundo onde o Pai vivia, infinitamente distante do meu, onde ele governava, dava ordens; 3a.) um terceiro mundo onde as outras pessoas viviam felizes e livres de ordens e de obediência.  O verdadeiro aprisionamento, na verdade, vai corresponder ao primeiro mundo de uma lei exclusiva, cujos parâmetros que o ligavam ao pai dominavam sua vida “na infância, como pressentimento; mais tarde como esperança, mais tarde ainda como desespero”. Em linhas gerais, a “Carta ao Pai” fala do impossível, da resignação e da culpa. O acesso à lei simbólica sendo concedido apenas como aproximação,  resta ao sujeito sua mortificação sistemática, a ponto de, na vida, buscar e fazer uma doença que o conduziria finalmente à redenção pela morte real. Transparece o tempo todo nesse texto a impossibilidade de o sujeito se reconhecer desejante, tal a dívida de sangue que o sobrepuja e escraviza. Acossado desde cedo pelo medo, nem mesmo a dádiva da rivalidade lhe é concedida (salvo a hostilidade contra si mesmo), porque “você assumia para mim o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado, não no pensamento, mas na própria pessoa.[…] Entre nós não houve propriamente uma luta: fui logo liquidado”. Não há indulgência possível nesse pai odiento, salvo a trégua que o onipresente sentimento de culpa e suas conseqüências concedem. Se considerarmos que a culpa é muito mais que um sentimento – um peso oprimente que o sujeito deve suportar – mas também a procura de causas razoáveis e válidas para a condenação, podemos, não compreender, mas solidarizarmos com a perplexidade com que K. e seus personagens se debatem em busca da compreensão dessas causas. Se há um leitmotiv em sua obra é justamente esse estranhamento com que cada personagem se debate ante o sem-sentido e o enigmático de uma condenação absurda e insensata.

Antes de encerrar a apresentação deste trabalho e para tirar a impressão de uma certa claustrofobia que emana da vertigem narrativa kafkiana, evoco uma anotação de fevereiro de 1918 de seu diário: “[…] o que explicam meus fracassos ( vida familiar, amizades, casamento, profissão, literatura ) não são a indolência […], é a falta de terra, de ar, de lei. Minha tarefa é criá-los […]. Sou um fim ou um começo”(Kafka, 1938, p. 482). Esta tentativa  de um auto-engendramento da lei, tão comum nos arranjos sintomáticos da neurose obsessiva, por exemplo, tem em Kafka, no ato de criação, uma dimensão salvadora. Depois de permanecer anos a fio sentado num banquinho, o camponês da fábula, antes de morrer, vislumbra um brilho inextinguível que irrompe da porta da lei. É o mesmo brilho que, como esperança, embala o autor  nas tentativas de desembaraçar-se da dimensão maldita do pai, em busca da tradução do seu amor como indulgência. Na Carta, Kafka confessa: “Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha  as queixas que não podia fazer no seu peito. Eram uma despedida intencionalmente prolongada de você[…]”. Para alguém que se definia como sendo a própria literatura,  é apenas mais um paradoxo  o ato de criação ser concebido  como luto e busca de libertação, luto e libertação que  resultarão,  na vida, em fracasso, mas cujo resgate é conseguido por sua obra, que nos concede a possibilidade de redenção. Há muito ainda o que dizer sobre esses paradoxos…


[1] Texto apresentado na XI CIRANDA DE PSICANÁLISE E ARTE, organizada pela Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro nos dias 12, 13 e 14 de setembro de 2014.

[2] Psicanalista – Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Brasília.

[3] Na “Interpretação dos Sonhos”, Freud menciona que o sonho ocorrera ‘na noite anterior aos funerais do meu pai’.

BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund,  Edição Standart Brasileira, volume I, Imago Editora Ltda., Rio de Janeiro, 1977

GEREZ-AMBERTIN, Marta, Las vocês del superyo, Ediciones Manantial SRL, Buenos Aires, 1993

KAFKA, Franz, Oeuvres Complètes, vol. III, Editions Gallimard, Paris, 1938

___________, Carta ao Pai, Companhia das Letras, São Paulo, 1985, 1997.

___________,  O Castelo, Companhia das Letras, São Paulo, 1985, 1997

___________,  Metamorfose, Companhia das Letras, São Paulo, 1985, 1997

___________,  O Processo, Companhia das Letras, São Paulo, 1985, 1997

PONTALIS, J-B/MANGO, Edmundo Gómez, Freud com os escritores, Três Estrelas Ed., São Paulo, 2013.

 

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