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Barbacena: a propósito dos 30 anos da reforma psiquiátrica

BARBACENA
(A propósito dos 30 anos da reforma psiquiátrica)

 

Dr. José Mário Simil Cordeiro

Médico-psiquiatra e psicanalista da Secretaria de Assistência Médica e Social do Senado Federal

Se cada doido tem sua mania, cada cidade do interior tem seus doidos oficiais, aqueles apontados pelos adultos e temidos pelas crianças, aqueles que oferecem o espetáculo de sua excentricidade aos olhos e aos medos do cidadão normal. As cidades mineiras não foram diferentes quanto a esses doidos tomados como exemplo do destempero e usados como contra-modelos identificatórios, nisto que geralmente as mães fazem como recurso pedagógico. Conta a fábula, por exemplo,  o caso do famoso “caminhão da Laurinda”, que recolhia os bobos, os mendigos e os loucos das ruas de Patos de Minas e era nele que eram embarcados os meninos teimosos, quando os pais já não podiam mais fazer por eles senão ameaçá-los com  a injeção do médico, o ferrinho do dentista ou o hospício. Quem quer que pertença à geração do pós-guerra e tenha tido o privilégio, como o poeta de Miraí, de ser feliz sem saber nos grotões de Minas Gerais, dará seu testemunho de como o imaginário popular constrói, através de metoníminas, suas metáforas, uma das mais folclóricas delas sendo aquela que deslocava para a aprazível cidade de  Barbacena toda a carga assustadora da loucura humana. Era assim que meu olhar de criança capturava o mistério do famoso “orelhinha”, doido varrido de nossa infância, que ali passou muito tempo, que era o lugar de onde ele nunca deveria ter saído. Não era tempo ainda de compreender que Barbacena, já desde o início do século XX, condensava esse sentido por abrigar o que se tornou a metáfora de um modelo assistencial que nasceu com a psiquiatria francesa no século XIX, através de Pinel e Esquirol.

Era de Barbacena, portanto, que vinha o rumor de seu famoso hospício, construído nos moldes dos hospícios D. Pedro II no Rio de Janeiro e Juquerí em São Paulo. Ali, as boas intenções dos alienistas pioneiros, com sua ideologia do tratamento moral, não foram suficientes para controlar a sanha do saber médico e a ambição científica da jovem especialidade psiquiátrica prosperou nos chamados tratamentos biológicos (malarioterapia, choque cardiazólico, choque insulínico e eletrochoque), marca registrada da fase áurea desses hospícios. Nem mesmo a revolução farmacológica iniciada na década de 50 conseguiu mudar seu destino, fadado que estava a carregar a marca do medo humano talvez mais ancestral que é a loucura. Se o manicômio, na perspectiva filantrópica e ingênua de seus idealizadores, encarnava uma visão de compaixão dos loucos, a história veio mostrar que o buraco da loucura apenas fazia borda ao controle social e à exclusão. Durante quase meio século, então, os corredores do hospício de Barbacena ou de qualquer outro no Brasil  testemunharam o desenvolvimento de técnicas de tratamento que só não eram mais cruéis porque eram inventadas em nome da ciência e da razão e um cenário se forjava ali, sob o manto das boas intenções médicas, dando razão a Simão Bacamarte, alter-ego de  Machado de Assis que, horrorizado com a fragilidade da condição humana, desfaz as fronteiras entre loucura e sanidade em seu célebre conto “O Alienista”. Durante muito tempo essas fronteiras se mantiveram veladas e toda uma geração de alienistas se formou nesse filantropismo que dava aos pobres loucos o estatuto digno de doença mental, submetidos, portanto, a toda espécie de experimentalismo terapêutico. Diferentemente da visão do artista, entretanto, cuja fina ironia reduzia o fenômeno da loucura humana ao mistério de seu enigma, a arte médica se desfez em caricatura e o hospício de Barbacena tornou-se o continente de toda espécie de degenerados, indistintos párias humanos que nenhuma nosografia conseguiria classificar.

Era esse pelo menos o cenário que, no fim da década de 70, um outro artista, no caso o cineasta Helvécio Ratton, conseguiu descrever em seu premiado curta metragem “Em Nome da Razão”. As cenas desse filme causaram horror e inquietação por sua contundência, constituindo um divisor de águas a partir do qual o movimento antimanicomial prosperou. Essencialmente, essas imagens inesquecíveis denunciavam a forma obscena de tratar nossos doentes, encarcerando-os em instituições fechadas.Tratava-se, implicitamente, de propor uma nova psiquiatria, mesmo que se acolhessem nela as conquistas da recente revolução psicofarmacolócia. Nesse contexto, a realidade do hospício de Barbacena escandalizava não só pelo caráter degradante e subumano dos métodos de tratamento ali vigentes – encarnando portanto a decadência natural de um modelo assistencial –  como nutria, com a violência de seus desvios, a indignação de uma geração de profissionais que se formavam, mesmo com certo romantismo, a partir dos fundamentos de pelo menos três correntes doutrinárias do século XX: o modelo organo-clínico, fundamento básico da medicina moderna, a fenomenologia, de origem filosófica e a psicanálise freudiana. Essas fontes doutrinárias convergiam para a valorização da famosa relação médico-paciente como o lugar privilegiado para se forjar o diagnóstico, incluindo o sujeito interrogante, o candidato a terapêuta nos meandros da loucura do seu paciente, fonte muitas vezes de angústia e sideração.  A conseqüência prática dessa formação não podia ser outra: o choque frontal e direto com a realidade reinante nos hospícios, uma realidade institucional que estava mesmo aquém da tradição mecanicista inaugurada por Kraepelin, a causalidade científica linear tendendo a transformar nossos pacientes em meros objetos de intervenção mecânica, seja pela medicação, seja pela contenção física. A convivência com essa realidade não era mais possível e o embate se deu, primeiro com os setores poderosos da opinião médica que cultivava uma mentalidade empresarial que fazia dos pacientes fonte de lucro e, segundo, dentro da própria comunidade psiquiátrica que, por razões de crença ou comodismo, preferiam continuar acreditando nos métodos de contenção, agora protegidos pelo saber farmacológico: criava-se o mito da camisa de força química, fonte da onipotência terapêutica da psiquiatria biológica.

A evocação, então, desses tempos heróicos da história da psiquiatria brasileira não se funda apenas na nostalgia de entusiasmos juvenis, mas é também um convite à reflexão dirigido principalmente às novas gerações de psiquiatras, de cujo discernimento depende o futuro da própria psiquiatria. Se as últimas três décadas constituíram para muitos o tempo de luta por reformas e mudanças, nem por isto deixa de estarem intactas as questões levantadas pelo objeto de nossa intervenção que é a loucura humana. Vivemos uma época em que o chamado progresso das ciências ligadas à medicina alcançam resultados espetaculares, haja vista, por exemplo, o verdadeiro frenesi com que a indústria farmacêutica lança novos medicamentos no mercado. Se os protestos e as denúncias  que caracterizaram esse movimento psiquátrico, ele pode ser medido, por exemplo, pela modificação da letra da lei.. Mas, o que dizer da configuração tomada pela formação psiquiátrica contemporânea, senão que ela abandonou todos os fundamentos doutrinários que a justificam enquanto ciência humana! Se a câmara de horrores que outrora indignou muitos profissionais, fazendo-os moverem céu e terra, pode hoje ser um retrato na parede, temo que os demônios condensados no estigma da loucura tenham apenas mudado de aparência e de nome, justificando uma medicalização da dor que aprisiona os psiquiatras numa dependência aos valores mercadológicos que apenas recupera para eles a função espúria de guardiães da boa norma social. As incertezas dos tempos de hoje, somadas ao empirismo onipotente de uma psiquiatria simplificada e sem teoria nos fazem pensar num futuro sombrio para a pesquisa da complexa subjetividade humana. Se isso se confirma, todo o esforço pela mudança terá sido vão e os doidos das nossas cidades continuarão sendo apontados pelos adultos e temidos pelas crianças e Barbacena permanecerá sinônimo eterno de desvario.

 

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Ana Amélia

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