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FÓRUM DE DEBATE 2020

FÓRUM DE DEBATE 2020

Seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (J. Lacan)


Coleção dos textos apresentados pelos expositores

Sumário

 


Encontro #1
Capítulo I, A Excomunhão
[Comentários à primeira lição do Seminário 11 para leitura conjunta]

José Mário Simil Cordeiro

Analista Membro da Escola (ELP-Brasília)

Como finalidade de contextualizar o fato histórico que levou Lacan a ditar esse Seminário intitulado originalmente como “Fundamentos da Psicanálise”, registro alguns acontecimentos. Estamos num momento de conclusão de investigações que a IPA vinha instituindo para apurar “desvios” técnicos que Lacan vinha praticando desde 1953. Resumidamente, podemos lembrar que em agosto de 1963 o Comitê Executivo  da IPA exclui Lacan da lista de didatas: “daqui por diante não é mais reconhecido como analista didata”. Em 19/11/1963 a Assembléia Geral da Sociedade Francesa de Psicanálise, à qual Lacan era filiado, confirma essa decisão. Em 20/11/1963, Lacan suspende, após uma primeira e única sessão, o Semináro “Os nomes do pai”.  Em janeiro de 1964, refugiado na VI Seção da École Pratique des Hautes Études da Sorbonne, ele inicia o novo seminário com as seguintes questões: 1) o que aproxima e distingue  a psicanálise da uma ciência, de uma religião, de uma pesquisa, de uma alquimia? 2) que conceitos  (talvez “conceitos em formação”} a fundam como “práxis”, isto é, como operação suscetível de tratar o real pelo simbólico”.? Ele coloca o fato de sua expulsão na entrada de sua questão e a interpreta como uma excomunhão maior, ao relacionar essa expulsão ao herem  pronunciado contra Espinosa, ao qual acrescenta o sem volta do shamata: Lacan está proibido de exercer a função de didata, seu nome deve ser apagado da lista de didatas. Não está, no entanto, desqualificado como psicanalista ou proibido de qualquer ensino. Ele dá no entanto a esse ato o estatuto do que seria, na Igreja, uma interdição disciplinar, isto é, a gravidade de uma medida que o põe fora do sacramento e fora do ritual; logo,uma medida que atinge a própria essência do laço do sujeito com Deus e sua comunidade. Essa interpretação terá para ele e seus alunos o valor de um mito fundador. Resumindo, em 1964, Lacan interroga o desejo do analista do ponto de vista da posição excepcional de Espinosa com relação ao desejo humano. Mas seu ato fundador de uma Escola está mais próximo do gesto clássico do herético que, ao decidir tomar a verdade por uma ponta singular, entende voltar à letra do texto contra o desvio operado pela instituição. Ele escolhe prosseguir sua tarefa de formação, uma “tarefa em progresso”, inseparável de sua volta à ortodoxia freudiana que ele já vinha fazendo desde 1953. Em 21/6/1964, ao final do Seminário XI, ele funda da EFP. O Seminário XI, então, tem uma ligação teórico/doutrinária com o que passará a acontecer  daí por diante com o projeto de Lacan de continuar relendo Freud e corrigindo  os desvios da leitura dos conceitos fundamentais que fundam a psicanálise.

A lição de 15 de janeiro de 1964.

No ítem I da lição, Lacan estabelece que falará dos Fundamentos da Psicanálise, começando por dizer que seu seminário desde o começo esteve nisso implicado, explicando que assim o fazia por fundar a psicanálise numa práxis dirigida para um elemento dela que era a formação do analista. Isto significa também para ele definir o que é a psicanáise, questão que percorrerá todo o seminário. A propósito dessa questão, ele denuncia que seu ensino sofre por parte da IPA  uma censura que visa à proscrevê-lo, propondo considerá-lo como nulo, além de propor que essa proscrição seja  condição de afiliação à Sociedade oficial fundada por Freud: esse ensino jamais poderia voltar  à atividade para  formação do analista. Daí Lacan equiparar essa proposta da IPA à excomunhão maior  imposta a Espinosa pela Igreja. Nesse ítem I há todo um esforço de Lacan de equivaler as condições que a IPA impunha  de permanência do seu ensino a essa excomunhão maior sofrida pelo filósofo. Mesmo reconhecendo tratar-se de uma metáfora, Lacan passará a tratar esse episódio como um fato que deve ser abordado analiticamente, um fato colocado como objeto cujos contornos e manejo o levam a colocá-lo  na entrada do que tem a dizer, ao interrogar o que são os fundamentos da psicanálise? O que é que a funda como práxis?.

No ítem 2, Lacan interroga o que é uma práxis, designando-a uma ação realizada pelo homem que o põe em condições de tratar o real pelo simbólico. Ele introduz aqui dois termos pelos quais vai interrogar o estatuto epistemológico da psicanálise: qual sua referência em relação à ciência e à religião. A psicanálise, para ele, que seja ou não digna de se inscrever num desses dois registros, pode nos esclarecer sobre o que entendemos por uma ou outra. Esclarece, en  passant, sobre um terceiro termo, a pesquisa, para dizer que não se considera um pesquisador, pois, como Picasso, “eu não procuro, eu acho”. Se a pesquisa pode interessá-lo é pelo que ela pode estabelecer como reinvindicação hermenêutica, no sentido em que ela procura a significação sempre nova e jamais esgotada, mas ameaçada de ser limitada por aquele que acha. Em outras palavras, a hermenêutica interessa à psicanálise quando sua via de desenvolvimento da significação se confunde com a interpretação. Essa vertente interessa, portanto, quando cria um corredor de comunicação entre a psicanálise e o registro religioso. Para autorizar à psicanálise chamar-se uma ciência, Lacan exigirá mais, pois para ele o que especifica uma ciência é um objeto definido, no caso, pelo menos por um certo nível de operação reprodutível chamado experiência, sempre lembrando que esse objeto muda no curso de evolução de uma ciência. Acrescenta, em seguida, que se se ativer à noção de experiência entendida como o campo de uma práxis, ver-se-á bem que ela não basta  para definir uma ciência. Dá em seguida o exemplo da alquimia, que se fundamenta na experiência, e pergunta se isso a autoriza como ciência. Tudo isso para retornar à questão da psicanálise, introduzindo agora a questão nesta da presença do analista, relacionando-a com o que se dá na análise didática que põe em questão qual é o desejo do analista.

O ítem 3 inicia interrogando o que há de ser do desejo do analista para que ele opere de maneira correta. Esta seria uma questão que não poderia ser deixada de fora dos limites do campo da psicanálise, como o é de fato nas ciências onde ninguém interroga sobre o que é , por exemplo, do desejo do físico. Em cada caso, o desejo do analista não pode de modo algum ser deixado de fora de nossa questão,  também pela razão de que o problema da formação do analista o coloca. É para isso que serve a análise didática. Destacando essa questão, Lacan continuará insistindo, deixando sempre em aberto, em estabelecer o que é o bastante para definir as condições de uma ciência, apontando que a psicanálise, nesse ponto, aparece com características problemáticas. Interroga, então, a que dizem respeito as fórmulas na psicanálise; pergunta se existem conceitos analíticos de uma vez por todas formados; a que se remete, por exemplo, a manutenção quase religiosa dos termos dados por Freud para estruturar a experiência analítica; seria Freud o primeiro e único cientista a ter introduzido conceitos fundamentais? Trata-se, até, mesmo de conceitos? Serão conceitos em formação, em evolução, em movimento, a serem revistos? Lacan afirma que essas são questões sobre as quais houve algum avanço, visando a resolver se a psicanálise é uma ciência. Na verdade, para ele a manutenção dos conceitos de Freud não impede que eles sejam falseados, adulterados, rompidos, ou simplesmente engavetados. Daí, para garantir o  estatuto teórico para a psicanálise, não cabe encontrar, num caso, o traço diferencial da teoria e querer explicar, com esse traço, o porque por exemplo sua filha é muda (referência à crítica de Lacan ao saber enciclopédico acumulado pela literatura analítica, cuja aplicação consistiria em explicar o sintoma pelos conceitos) ao invés de demonstrar a relação do desejo com a linguagem, questão que não permaneceu velada a Freud. Isto na medida em que numa análise trata-se de fazê-la falar, e esse efeito procede de um tipo de intervenção que nada tem a ver com a referência ao traço diferencial buscado na teoria. Se no caso da menina muda seu sintoma, o mutismo, está curado quando ela fala, isto designa apenas um traço diferencial da histeria, isto é, o traço diferencial da histérica é precisamente este: é no movimento mesmo de falar que a histérica constitui seu desejo. Freud descobriu os mecanismos do inconsciente estabelecendo, com as histéricas, a relação do desejo com a linguagem. Entretanto, teria deixado inteiramente fora do campo a questão específica do por que ela só pode sustentar seu desejo como desejo insatisfeito. É aí, para Lacan, que a histérica nos põe na pista de um certo pecado original da psicanálise, sendo esse pecado verdadeiro apenas uma coisa, é o desejo do próprio Freud, isto é, o fato de que algo, em Freud, jamais foi analisado. Lacan diz, então, que era justamente nesse ponto que ele estava, quando foi posto em posição de ter de se demitir do seu seminário. O seminário sobre os Nomes-do-pai, interrompido em 20/11/1963, não visava a outra coisa, senão por em questão a origem, isto é, por qual privilégio o desejo de Freud tinha podido encontrar, no campo da experiência que designa como inconsciente, a porta de entrada. O seminário XI, então, é uma forma de retornar a essa origem, o que é absolutamente essencial se queremos colocar a psicanálise de pé. Daí ele propor o tema do seminário da seguinte forma: que estatuto conceitual devemos dar a quatro dos termos  introduzidos por Freud como conceitos fundamentais, nominalmente: o inconsciente, a repetição, a transferência e a ´pulsão. No seminário XI, então, ele vai considerar  o modo pelo qual, em seu passado, situou estes conceitos em relação a uma função mais geral que os engloba e que  permite mostrar seu valor operatório neste campo, isto é, a função significante enquanto tal, subjacente, implícita.

Encontro #2
Encontro #3
Capítulo III, Do Sujeito da Certeza

Alba Escalante

Psicanalista e membro da ELP-Brasília

Neste texto vou comentar alguns momentos da sessão do dia 29 de janeiro de 1964. Evitei pesquisar de forma transversal em vários textos de Lacan e  procurei fazer perguntas para o texto. Tomei a liberdade de trazer algumas coisas que não estão no texto, apenas para traçar uma pequena argumentação, ou melhor, um mínimo raciocínio.

No início, Lacan menciona um questionamento feito por J. A. Miller a propósito do que seria “ontologia” (a ontologia de Lacan). Acho importante lembrar que, com a mudança de local, o público do Seminário também muda. Lacan está entre filósofos, dentre eles Miller, aluno de Althusser, quem teria a pedido para seus alunos assistir o Seminário.

Ontologia é um termo que tem o peso da história da filosofia. Lacan, que já tinha falado da função estruturante da falta, e já tinha mencionado o desejo, apresenta: “falta-a-ser” como a função do desejo [la fonction du désir comme le manque à être]. O que acontece se tiramos o ser? Derrubamos o as bases da história do ocidente?

Na tentativa de driblar a dificuldade inerente ao tema da ontologia, faço a seguinte proposta: 1) considerar que há diferentes ontologias; 2) pensar que podemos distinguir entre:

        • a ontologia como aquilo que trata o ser entanto que ser. [por exemplo: o corpo tem um ser ou a frase “eu sou assim”]. Nesse caso, haveria uma materialidade, seja genética, biológica, força vital, personalidade, traço, algo que “é” que vem de algum lugar, seja das tripas, do interior, das profundezas e, além disso, é inamovível. Chamemos isso, provisoriamente, de metafísica.
        • a ontologia como aquilo que estuda/trata o que há, o que existe. Gostaria de lembrar, a propósito disso, algumas sentencias de Lacan (que não vamos discutir hoje): “a mulher não existe” ou, “Deus é inconsciente”. Vejam a presença do verbo ser.

Após gravitar na falta, e falar do que engendra, a questão em Lacan parece menos metafísica. Ele disse: “a hiância do inconsciente, poderíamos dizê-la pré-ontológica”. Podemos ler isso como pré-metafísico, essa seria uma forma de começar a trabalhar o problema.

Essa primeira emergência do inconsciente não se presta à ontologia. Sublinho a palavra “primeira”. Assim, não nos interessa muito aquilo que corresponde ao pré-ontológico, pelo menos na “primeira” emergência. Dito em outros termos: o inconsciente engendra o ser, mas não é ser.

No texto Estudos sobre a histeria (IV. Sobre la psicoterapia de la histeria) Freud fala de uma “inteligência inconsciente”. Sobre a origem do padecimento, a paciente faz referência a sua infância, mas disse que não lembra. Nessa época, Freud colocava a mão na testa da paciente e perguntava: vem algum pensamento ou viu alguma coisa? Neste caso a mulher diz que não, mas que pensou numa palavra que não tinha nada a ver. Freud insiste para que ela a diga, e depois que diga a outra. Seria isso o que Lacan leu em Freud? Trata-se do pontapé inicial para falar do inconsciente estruturado como uma linguagem? Freud pergunta: o que isso (aquela palavra) quer dizer? Vamos tentar ler essa pergunta em função do tema da ontologia, tendo em vista que há uma diferença entre dizer alguma coisa e querer dizer alguma coisa. Dessa forma, podemos traçar alguma coordenada sobre a questão do significante e do “inconsciente estruturado como uma linguagem”.

Freud insiste com essa modalidade (leitura do oráculo) e disse que a série de palavras não podia ser interpretada como um conjunto, mas na continuação do procedimento, ou seja, com outro conjunto. Uma cena entrelaçada com outra cena. Será que temos aqui algo como um esboço da função significante? Não é isso o que chamamos de estrutura?

Nessa perspectiva, podemos trabalhar com a hipótese do significante, ou seja, aquilo que não se significa a se mesmo. Essa é uma das muitas definições de Lacan. Com isso pode ficar clara uma distinção entre Freud e Lacan. O significante não é a representação freudiana. Outra coisa que podemos dizer é que significante não é uma palavra, já que se fosse, ele teria falado de palavra e não de significante.

Mas, o que é o significante? O significante é a pura diferença, aquilo que se sustenta somente disso pelo que os outros diferem dele, funcionando em articulação repetitiva (Lacan, 26/02/1969). Há um querer dizer que acaba por não dizer. O sentido é a direção, a produção, tendo em vista que, a palavra, quer dizer… mas não disse. O que é, então, da ordem do inconsciente? Qual é a sua especificidade? É que ele não é nem ser nem não ser, mas algo de não realizado. Leio isto como uma suspensão do sentido ontológico enquanto metafísico. Dito de outra forma, uma sorte de fragilidade ontológica. O ser [pensemos nos padecimentos das pessoas] são seus predicados… só que não, já que numa análise, esse “ser” vai ser trabalhado em chave significante, chave de leitura que me parece extensiva ao campo da Psicanálise, ou seja, extensiva à forma de trabalhar aquilo que se chama psicanálise. Vejam o que disse Lacan na primeira aula: “Considerar o modo pelo qual, em meu ensino passado, situei estes conceitos em relação a uma função mais geral que os engloba, e que permite mostrar seu valor operatório neste campo, isto é, a função do significante enquanto tal (…)”. Lacan nos proporciona sua chave de leitura, a saber, leiam os fundamentos como significantes, que não se significam a si mesmos.

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Lembrei de um pequeno conto de Juan José Millas. Deixo aqui o link para quem quiser apreciar: https://cvc.cervantes.es/aula/didactired/anteriores/mayo_04/03052004_01.htm

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Flectere si nequeo superos Acheronta movebo. Eis a epígrafe da interpretação (sentido) dos sonhos.  Um pouco de informação enciclopédica: Parte da Eneida, de Virgilio. [Se eu não posso mover os céus, vou me dirigir ao inferno]. Seria esse o espírito Freudiano?

Lacan faz o diagnóstico, a abertura infernal foi, na sequência, levada de forma notável a uma assepsia, a descoberta esterilizada. A minha proposta é que quando se trabalha em função de “isso quer dizer ALGUMA COISA”, estamos na via da assepsia. Por outro lado, o infernal, a obscuridade estaria referida, precisamente, a essa impossibilidade de trabalhar com o que está ao alcance, seria necessário avançar. O problema é escorregar nos fenômenos paranormais. Por outro lado, o obscuro, pode se transformar em uma taxonomia. São essas algumas das advertências de Lacan. Ele tenta circunscrever o campo da psicanálise sem se furtar das dificuldades.

O desejo limitado, mas indestrutível. Por ser limitado, seria indestrutível. Vejam que ele vai diferenciar prazer de desejo. O desejo não é prazer. O prazer corresponde ao princípio da homeostase. Mas, sobre o desejo, que é um operador importante, neste caso, me parece que está trabalhando-o como função.

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Sobre o ôntico (outro probleminha, porque parece se referir a Heidegger e sua diferença entre “ente” e “ser”), Lacan vai apontar para a fenda, e o instante que traz à luz. Abertura e fechamento. Temos aqui uma referência ao inconsciente de Lacan, esse inconsciente pulsátil, da alternância e que só pode ser pensado quando trabalhamos a ideia de que, tendo em vista que um significante não se significa a se mesmo, preciso pelo menos dois.

Leio isso em função da operação no dispositivo, da aposta em um significante que, mesmo extraído da fala do paciente, não deixa de ser uma escolha do analista: “o que isso quer dizer?” (abre) – segundo tempo: aparece o querer dizer, que depois se fecha.

Mais um passo, precisamos do tempo. Qual é o tempo disso? Lembremos o tema das sessões de tempo variável, ou seja, sem padrão. Não há como prever, tendo em vista o caráter evanescente. Entretanto, há uma passagem de Lacan que me levou a outras perguntas: “o que é uma coisa senão aquilo que dura, idêntica (ou seja, já não mais significante, seria o significado?) um certo tempo?”.  Estamos, por um lado, nos afastando da garantia metafísica, mas com a possibilidade de capturar aquilo que, sendo idêntico a si mesmo (metafísica?), se esvai.

“O desejo indestrutível, se ele escapa ao tempo, a que registro pertence?” Nessa pergunta há uma ambiguidade que nos leva a pensar na importância, também, do tempo da duração.  Achei isso bastante curioso, porque se pensarmos na função da hiância, como a surpresa, como aquilo que nos deixa boquiabertos, podemos dizer que haveria algum instante de duração. Haveria, assim, uma aparição que, quando se tenta recuperar, essa recuperação, é da ordem do engano. Leio isso em função de pensar que o que acontece em nosso campo é muito mais sutil do que aquela imagem da cenoura na frente que nunca se alcança. Acredito que a função do engano é fundamental.

O que se passa ali é inacessível à contradição, ao espaço, ao tempo. Vemos categorias como o princípio da não contradição, o partes extra-partes, estão comprometidas. Dito de forma provisória, a lógica do inconsciente tem outra legalidade, que não é a legalidade do conhecimento. Lembremos que uma verdade pode ser, ao mesmo, tempo uma mentira, e que Cracóvia e Lemberg, no mapa, estão em lugares diferentes, mas no chiste não.

Onticamente o inconsciente é evasivo. Mas pode ser circunscrito numa estrutura, uma estrutura temporal, jamais articulada, até agora, como tal. Então, há uma ontologia? O evasivo permite falar em ontologia?

O inconsciente freudiano é possível ser assimilado a uma ontologia metafísica, aliás, na primeira tópica, trata-se de uma instância. Não é essa uma das diferenças que Lacan apresenta?

*

“Pai, não vês que estou queimando?”

Lacan se ocupa desse sonho em várias aulas do seminário (e em outros. Recomendo, no seminário 16, a aula de 26/02/1969).

No texto que estamos lendo agora, Lacan formula a seguinte questão: por que sustentar a teoria segundo a qual o sonho é a imagem de um desejo com este exemplo? Essa teoria é bem conhecida, é a teoria de Freud. Assim, Lacan vai sublinhar o caráter de certeza que toma esse sonho, vinculado com o real.

Um sonho “re-sonhado”. Uma paciente conta para Freud que escutou esse sonho numa palestra sobre o sonho (fonte desconhecida). Essa “dama” teria ficado impressionada e “repetiu” elementos do sonho em um sonho próprio.

No capítulo “Sobre la psicología de los procesos oníricos” o relato é o que está em itálico. Ou seja, o que Freud escuta de uma dama que, por sua vez, teria escutado de alguém, é o relato do sonho.  Segundo Freud esse é um sonho paradigmático. Poderíamos pensar que se trata do sonho da teoria de Freud. Sua certeza!? Qual é a consequência disso?

Freud disse que a explicação é simples: realização de desejo. A criança se comporta como se estivesse viva, assim, o filho morto fica vivo, nem que seja por um momento. O sentido do sonho está dado (não se faz a tarefa de interpretação; mas por que não se fez? Este é um sentido é sem velamento. Foi Freud ultrapassado pela sua convicção? Fica como questão por que foi, precisamente com esse sonho, sonho que envolve o pai, que Lacan aponta o paradoxo. Há alguma coisa indicada, mas, no que se refere a Freud, isso não se analisa.

Nessa linha de raciocínio Lacan vai introduzir a transferência. O que consigo ler é que Lacan se refere aos psicanalistas e seus modelos, e de como esses modelos se impõem.

O modo de proceder do descobridor é o que proporciona ao inconsciente o seu estatuto de ser, tão evasivo, tão inconsistente. Ele adverte que isso vai causar espanto. Daí que o estatuto do inconsciente, frágil no plano ôntico, é ético. Remeto aos curiosos a um texto dos Escritos intitulado “Posição do inconsciente” e sugiro pensar nas nuances da língua francesa.

Ou seja, quando falamos em inconsciente, trata-se de algo que está vinculado ao desejo, desejo do analista, à orientação, ao proceder do descobridor. Então, podemos pensar nos desdobramentos produzidos quando se pensa em um único descobridor e seu modo de procede. Freud, único descobridor e “seu” modo de proceder? O inconsciente é de Freud. No entanto, também podemos pensar que haveria em cada analista, caso haja analista, um “descobridor” que vai proporcionar ao inconsciente um estatuto em função de um modo de proceder.

Nesse ultimo caso, a ética do analista consistiria, então, em estar advertido disso. Ou seja, se do que se trata tem a ver com o desejo do analista, com a orientação do analista, o analista deveria se interessar no seu proceder.

O signo do engano marca a histérica. Como nada era achado, pois os médicos procuravam a certeza em alguma lesão corporal, a solução é dizer: é mentira. Freud entra aí. Lacan vai falar da posição ética de Freud, e disse uma coisa muito valiosa, já que não se trata de falar da coragem de Freud, o herói. Sejamos moderados com este tipo de apreciações. Se formulo que o estatuto do inconsciente é ético e não óntico, é porque o Freud não percebe isso… ou seja, a paixão de Freud [a meu ver, paixão empirista], não lhe permitiu perceber que ele mesmo estava produzindo esse inconsciente.

Lacan vai falar da certeza de Freud e disse que seu encaminhamento é cartesiano, isto é, ele parte do sujeito da certeza. Trata-se daquilo de que se pode estar certo. Então, vejam que Lacan sublinha a necessidade de superar o que conota (o que fica associado) tudo o que seja do conteúdo do inconsciente. Não tenho certeza, tenho dúvidas.

Lacan sublinha que há uma ambiguidade na questão da dúvida. Em que ponto Descartes se aproxima de Freud? Em que ponto se afasta?

Para falar disso, seria necessário fazer um parêntese gigante.  Ora, nós pensamos a partir de Descartes, embora não saibamos. Recomendo o Discurso do Método para achar o cogito ergo sum, onde cogito refere às faculdades da inteligência e sum, existo/sou.

O que nos interessa é a relação entre a dúvida e a certeza em Freud e em Descartes. Diz Lacan que, em relação ao sonho, para Freud a dúvida é o apoio da sua certeza. No entanto, a posição de Freud é ambígua, tendo em vista que, se por um lado há alguma coisa a ser preservada, há também algo que tem que se mostrar. O que se mostra, nunca é, fica sempre sujeito à suspeita. Isso é muito evidente nos relatos clínicos de Freud. O paciente apresenta algo e Freud busca uma interpretação alternativa. Nesse sentido, pode ser cartesiano, porque duvida, mas não é cartesiano porque o que ele procura não é a clareza cartesiana.

Descartes disse que é ele quem pensa (pensamento consciente). Eis aí onde se funda o ser (Descartes). Lacan vai ser muito crítico com isso. Serei breve. E que tal, senhor Descartes, se não fosse você quem está pensando? E que tal se Outro pensasse em você?

Por outro lado, Freud, onde duvida, tem certeza de que um pensamento está lá, pensamento inconsciente, revelado como ausente, mas esse pensamento está lá, completamente sozinho de todo o seu eu soua menos que…. ALGUÉM PENSE EM SEU LUGAR. Eis aqui a dissimetria.

Descartes tem seu Outro, mas esse Outro cartesiano é garante, de que? Garante da VERDADE. O Deus perfeito.

Gostaria de problematizar um pouco mais esse ponto, colocando para discussão a possibilidade, em função do correlato clínico, de transformar o inconsciente no Deus de Descartes, ou seja, no garante, porque o Deus de Descartes não engana. Ora, Deus é inconsciente, eis a verdadeira fórmula do ateísmo. Frase pronunciada por Jacques Lacan neste seminário. Precisamos pensar o que vamos fazer com isso.

Na psicanálise trabalhamos com o engano, isso tem uma função. O sujeito pode nos enganar, mas o problema é acreditar que há uma verdade absoluta. Nesse sentido, o que se diz em uma análise não é nem verdade nem mentira, mas o lugar onde temos que buscar o inconsciente, a verdade oculta, mas nunca a verdade verdadeira. Neste ponto, acho importante lembrar a verdade é sempre meio dita.

Umas palavras finais sobre os casos mencionados. No caso da jovem homossexual, o inconsciente pode se exercer no sentido do engano. Eu minto, é o paradoxo do mentiroso. Eu minto, pode ser tomado como verdadeiro ou como falso.

Lacan vai apontar que o problema de Freud foi que não consegue formular corretamente o desejo da histérica, no caso Dora, e no da Jovem homossexual. Vejam que antes Lacan falava que somos pessoas que nos podemos enganar, como todo mundo.

O que faz Lacan com esses casos é algo que Freud não fez, isto é, traçar os pontos da estrutura. Em função dessa estrutura ele apresenta os elementos que Freud deixou escapar. No Seminário 5, na aula de 21/05/1958, Lacan adverte que para o histérico o desejo é um ponto enigmático, adverte que se costuma proceder como Freud. Esse procedimento consiste em prover uma interpretação forçada. A clareza de Lacan neste ponto é assustadora, mas não porque Freud tenha errado, mas porque esse erro retorna na prática dos analistas.

Quis, propositadamente, trazer esses recortes específicos da clínica, porque já na primeira aula Lacan falava de práxis. A referencia do dicionário de filosofia Ferrater Mora, que fiz circular no grupo indica que “a práxis é no marxismo a união da teoria com a prática”, e não a “aplicação” de uma coisa encima da outra.

Sobre “o desejo do homem é o desejo do Outro”, que dá um pano para manga, decidi aguardar porque neste seminário há uma passagem, de brilho inestimável, para aqueles que se ocupam da clínica, lugar privilegiado para pensar um enunciado desse porte. Falo da aula do dia 20 de abril de 1964. Uma pérola de Lacan sobre a nossa querida Ana O. Até lá, espero que o nosso trabalho avance o suficiente para poder apreciá-la no seu relevo.

Deixo este esboço de leitura até aqui, não se antes agradecer àqueles que, sabendo ou não, contribuíram e contribuirão com esta modesta proposta que, na verdade, é um convite para isso que faz uma Escola, o trabalho em conjunto.


Encontro #4

Encontro #5
Leitura explicativa do capítulo V, Tiquê e Autômaton

André V. L. Niffinegger

psicanalista e membro da ELP-Brasília

O tema da lição de 12 de fevereiro de 1964 é mais amplo do que parece. Ele se inicia no fim da aula anterior e termina no início da subsequente.

Ao fim da anterior, Lacan nos apresenta o que ele entende por função da repetição e recorda que Freud articulou essa noção inicialmente em 1914, no artigo Rememoração, repetição e perlaboração.

Logo nos alerta para uma distinção inicial entre rememoração e repetição. Em análise, o sujeito é capaz de rememorar sua biografia até um certo limite. Encontrando o real, a rememoração encontra um muro.

Nesse momento, Lacan define o real como aquilo que sempre retorna ao mesmo lugar. Lugar em que o sujeito enquanto res cogitans não o encontra. De fato, a história da descoberta freudiana do fenômeno darepetição se define por ter apontado para relação entre pensamento e real.

Dá mais um passo e indica que, em Freud, repetição também não se confunde com reprodução(aquilo que se acreditava fazer com o método catártico). A repetição havia aparecido inicialmente de modo obscuro, como uma reprodução ou presentificação em ato.

“Ato” parece ser uma palavra valiosa, pois Lacan a escreve em seu quadro negro, acompanhada de um ponto de interrogação, e alerta que, ao falarmos da relação da repetição com o real, “ato” estará no horizonte. Vamos aceitá-la como uma bússola. Afinal, já entramos no tema perdidos, porque nada é tão misterioso na teoria de Freud, Lacan admite, quanto o conceito de repetição. Principalmente, se articularmos repetição àquela bipartição de base, opondo principio do prazer ao princípio de realidade.

Lacan anuncia o tema da aula de que vou tratar, e se refere à Física de Aristóteles e a duas noções ali tratadas na teoria das causas. Trata-se de revisar a contribuição do filósofo, utilizando-se dos conceitos de automaton e tuchè, traduzindo-os, respectivamente pelas ideias de “rede de significantes” e “encontro do real”.

*

Inicia a quinta sessão do seminário para continuar o exame do conceito de repetição no discurso de Freud e na experiência da psicanálise.

No gesto de abertura da lição, defende a psicanálise da acusação de que ela conduziria a um “idealismo” – o que parece ser, à época do seminário, uma crítica marxista. Nenhuma praxis é mais orientada do que a análise em direção ao que, no centro da experiencia, é o núcleo do real. O que a psicanálise descobriu seria precisamente esse encontro essencial de um real que, contudo, esquiva-se.

Lacan escreve duas palavras do grego clássico em seu quadro-negro: tuché e automaton. O real está para além do automaton – entendido como a insitência dos signos (sob o comando do princípio do prazer) – fato que justificaria a preocupação da pesquisa freudiana. Preocupação evidente em “Homem dos Lobos”, caso clínico em que Freud relata o esforço para descobrir qual o encontro inicial, o real por detrás da fantasia.

Por que razão Lacan convoca essas noções para elaborar o conceito de repetição? Afinal, ele está pesquisando a lógica de causação do fenômeno? Efetivamente, Aristóteles trata de tuché e automaton – acaso e espontaneidade – no seio da sua classificação das causas dos eventos.

*

Seguindo a sugestão de Lacan, vamos dar uma passada de olhos no texto do filósofo grego.

Aristóteles diz que é necessário examinar o acaso e a espontaneidade para descobrir se são uma só e mesma coisa ou coisas diferentes e de que maneira eles são de fato causas.

Considera que, em meio aos eventos, alguns se produzem com um propósito, outros, não. Entre aqueles com propósito, uns se produzem por meio de uma escolha refletida e outros não.

O acaso e o espontâneo se referem ao evento que se produz em vista de uma finalidade ou propósito. É proposital tudo aquilo que pode ser produzido pelo pensamento e tudo o que acontece do fato da natureza.

Quando os eventos se produzem por acidente, dizemos que são efeitos do acaso. Assim, para Aristóteles, o acaso é uma causa por acidente, em se tratando dos eventos que têm um propósito e são consequências de uma escolha.

Em suma, o acaso e a espontaneidade são duas causas por acidente no domínio das coisas que não podem se produzir de maneira absoluta e, dentre elas, das coisas que se produzem com um propósito.

Sobre a diferença entre acaso e espontaneidade, a espontaneidade é mais extensa: tudo que se produz por acaso é também espontâneo. Dentre o que se produz espontaneamente, se produzem por acaso todas aquelas objeto de uma escolha racional. Uma prova disso é o uso da expressão “em vão”. É empregada quando o propósito não se produz, mas somente em relação àquilo que é feito em vista de uma finalidade. Por exemplo, se fizermos um passeio com o objetivo de distração, mas aquele que passeia não se distrai, dizemos que o passeio foi em vão.

Aristóteles conclui que um evento é espontâneo quando se produz de si mesmo em vão [automatonforma-se da união de “auto”, de si mesmo e “matèn”, em vão. Automaton significa literalmente, o que se produz em vão e de si mesmo]. Uma pedra que cai sem o propósito de atingir e machucar alguém, teve uma queda “automática”, espontânea.

*

Voltando ao seminário… (I, §5)

Lacan ensina que não se deve confundir a repetição com o retorno espontâneo dos signos (automaton!), nem com a reprodução (rememoração atuada).

A natureza da repetição foi obscurecida por sua identificação ao conceito de “transferência”. Recordando Freud, afirma que, quanto à relação ao real na tranferência nada pode ser apreendido in effigie, in absentia.

Ora, a tranferência nos é dada conceitualmente precisamente como uma relação à ausência.  O sujeito se dirige ao analista, reiterando uma fala ou comportamento que é endereçada a uma imago irreal, a uma efígie. Portanto, para Lacan, a ambiguidade da realidade em causa na transferência deve ser desfeita a partir do exame da função do real na repetição.

Está claro para vocês por que a confusão dos dois conceitos é um obstáculo no caminho da pesquisa de Lacan?

Até esse ponto do argumento, ainda não era evidente o porquê das noções aristotélicas escritas no quadro. Mas, neste momento, Lacan articula a ideia de tuché na expressão: “o que se repete é algo sempre produzido como por acaso[1] (I, §6) O sujeito perde acidentalmente uma sessão ou relata ter ocorrido por acaso algo que lhe impediu realizar sua vontade. É precisamente com essas dificuldades, tropeços e embaraços, narrados como acasos, que o psicanalista vai ter que se deparar.

Lacan prossegue. A função da tuché, i.e., do real como encontro enquanto falho, apresentou-se primeiramente na história psicanalítica sob forma de traumatismo. (I, §7)

Não é notável que, na origem da experiência analítica, o real seja apresentado na forma do que nele há de inassimilável – na forma do trauma, determinando toda a sua sequência e lhe impondo uma origem na aparência acidental? Encontramo-nos aí no cerne do que pode nos permitir compreender o caráter radical da noção conflictual introduzida pela oposição do princípio do prazer ao princípio da realidade – é por isso que não se poderia conceber o princípio da realidade como tendo, por sua ascendência, a última palavra.[2]

Para Lacan entender por que há esse retono (no sonho) de algo que demonstra a insistência do trauma, ele relaciona traumatismo e repetição. Se o princípio do prazer recusa o desprazer, o que explica o retorno da cena traumática no que, segundo Freud, seria o instrumento de realização do Wunsh do sujeito? Afinal, qual é a função da repetição do trauma se nada parece justificá-la do ponto de vista do princípio do prazer?

Para Lacan (I, §10), o sistema da realidade deixa prisioneira uma parte essencial do que está em relação ao real, prisioneira nas redes do processo primário (correlato do princípio do prazer). O processo primário – aquilo que Lacan tentou definir sob a forma de inconsciente – deve ser apreendido na sua experiência de ruptura entre percepção e consciência, no local intemporal apelidado de “outra cena” por Freud. Nessa direção, Lacan cerne precisamente o campo da experiência analítica em que o fenômeno da repetição pode ser melhor contemplado.

O argumento ganha força com um exemplo pessoal. Ele descreve a situação em que, dormindo, ouve barulhos provocados por batidas. A percepção do barulho acarreta um sonho que manifestava outra coisa que não as batidas. Finalmente, atinge o momento do despertar e forma-se a consciência de que estava dormindo há pouco. Ele se pergunta o que é o sonhador no momento entre a percepção do barulho e a tomada de consciência desperta, no momento preciso em que a percepção deu lugar ao sonho, mas ainda não havia adentrado na representação consciente de si mesmo e da sua situação. (II, §2,3,4)

Para aprofundar, Lacan invoca outro exemplo mais revelador, um sonho relatado na Traumdeutung.[3]

*

Um pai passara dias e noites de vigília à cabeceira do leito de seu filho enfermo. Após a morte do menino, ele foi para o quarto contíguo para descansar, mas deixou a porta aberta, de maneira a poder enxergar o aposento em que jazia o corpo.

Após horas de sono, o pai sonhou que seu filho estava de pé junto a sua cama, que o tomou pelo braço e lhe sussurrou em tom de censura: “Pai, não vês que estou queimando?” Acordou, notou um clarão intenso no quarto contíguo, correu até lá e constatou que o velho vigia caíra no sono e a mortalha e um dos braços do cadáver tinham sido queimados por uma vela tombada.

A explicação desse sonho é simples. O clarão de luz chegou aos olhos do homem adormecido e o levou à conclusão a que teria chegado se estivesse acordado: que uma vela ateara fogo nas proximidades do corpo. O conteúdo do sonho deve ter sido sobredeterminado e as palavras proferidas pelo menino devem ter sido compostas de expressões que ele realmente proferira em vida. Por exemplo, “Estou queimando” pode ter sido dito em meio à febre e “Pai, não vês?” talvez tenha derivado de alguma outra situação carregada de afeto.

Por que produzir um sonho em tais circunstâncias, quando se fazia necessário o despertar rápido? E aqui observaremos que esse sonho serviu à realização de um desejo. O filho morto comportou-se no sonho como se estivesse vivo. Em nome da realização desse desejo, o pai prolongou seu sono.

Até aqui, Freud se concentrou no sentido secreto dos sonhos, bem como no trabalho do sonho para ocultá-lo. Mas agora esbarrou num sonho que não levanta problemas de interpretação e cujo sentido é óbvio.

*

Me pergunto por que Lacan evoca esse sonho para tratar da repetição e cogito uma resposta. Lacan vai tratar da repetição utilizando-se desse momento em que o sonho propicia, entre a percepção e a consciência, a emergência da “outra cena”. Lacan delimita esse espaço, que é propriamente um espaço de formação do inconsciente, no caso, formações oníricas, e recorta aí o fenômeno da repetição e o que seria a sua causa.

Temos em mãos um exemplo onírico que dificilmente confirma a tese de que o sonho é a realização de uma desejo frustrado. Vemos surgir, na Traumdeutung, uma função do sonho aparentemente secundária. Então, o que Freud quer dizer ao sublinhar que esse sonho confirma sua tese?

Se a função do sonho é proteger e prolongar o sono; se o sonho, afinal de contas, pode se aproximar tão de perto da realidade externa que o provoca, não poderia responder a esse estímulo sem que o sonhador precise despertar? O fenômeno do sonambulismo não seria uma prova disso? A questão seria então: “Qu’est-ce qui réveille ?” O que acorda? O que produz o despertar? Não seria, no sonho, uma outra realidade?

Lacan afirma que há mais realidade na mensagem do garoto ao pai do que no barulho e na luz da chama. (Especula: talvez não fosse a causa da morte do filho ou o remorso do pai?). Parece jogar com a significação da palavra “realidade”. Trata-se da mesma realidade até então evocada para a elaboração do conceito de repetição, do encontro com o real? Estaria se perguntando qual é a realidade mais relevante para a psicanálise e definindo suas condições teóricas?

Nesse movimento, Lacan formula uma pergunta cuja escolha das palavras novamente nos remete à tuché:

Que encontro pode haver daí por diante com esse ser inerte para sempre – mesmo a ser devorado pelas chamas – senão aquele que se passa justamente no momento em que a chama, por acidente  como por acaso, vem se juntar a ele? Onde está ela, a realidade, neste acidente? senão que algo se repete, mais fatal em suma, por meio da realidade (…)[4]

O encontro, sempre perdido (manquée) se passou entre o sonho e o despertar; entre aquele que ainda dorme e aquele que sonhou para não ser derpertado. Quanto à realização do desejo, não se trata de sustentar o filho vivo, e a criança morta tomando o pai pelo braço aponta para um além que se faz “ouvir” no sonho. (II, §14)

É uma passagem enigmática. Lacan critica a conclusão de Freud para dizer que o sonho não se presta a realizar o desejo de preservar a vida do filho. Lacan vai dizer: “Le désir s’y présentifie de la perte imagée au point le plus cruel de l’objet”. O desejo está presente nesse sonho, segundo Lacan, não porque ele fantasia que a criança ainda estaria viva, mas está presente no sonho pela perda do objeto. A perda, transformada em imagem no ponto mais cruel, i. e., a criança pegando fogo. É a perda do objeto que equivaleao desejo.

Em seguida, Lacan diz “C’est que dans le rêve, se fasse la rencontre vraiment unique, après quoi le désir n’a plus à subsister que comme deuil (…)” [staferla][5] Ou seja, o sonho representa o encontro do pai com o filho, que ele chama de um encontro verdadeiramente único, o encontro sempre falho, que nunca se realiza, no real.

Após o pai despertar, esse desejo vai dar lugar ao luto. (É o que Lacan quer dizer com o oração suprimida na transcrição de J.A. Miller: “après quoi le désir n’a plus à subsister que comme deuil”). Depois desse encontro único que o sonho permite realizar de forma imagética, o desejo não persistirá a não ser como luto.

*

[Digressão]: Lacan havia chamado nossa atenção para a noção de “ato”, que deveria sempre estar no horizonte como um ponto de fuga para nosso olhar investigativo, mas, contrariando nossa expectativa, até agora nesta lição, não dá nenhum exemplo do que seria a repetição por meio da atuação do sujeito. Talvez o fará, ao final desse capítulo, com a análise do jogo da bobina manipulada por um bebê de que Freud extraiu o famoso binômio alemão do “fort-da”, mencionado em “Além do princípio do prazer”.

Em relação ao “ato”, Freud diz que o sujeito consegue narrar suas memórias em análise, até um certo ponto, a partir do qual sua forma de se lembrar passa a ser a atuação, a repetição de atos não percebida como tal pelo sujeito, aos modos de um ator que encena, sem perceber que está no palco e que a cortina está aberta.[6] No artigo Rememoração, repetição e elaboração, leremos:

(…) o paciente não recorda coisa alguma do que acontenceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo. Por exemplo, o paciente não diz que recorda que costumava ser desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais; em vez disso, comporta-se dessa maneira para com o médico (…)[7]

Lacan aborda o tema nesta lição, não pelo exemplo de um ato físico, mas pelo exemplo de um sonho. Haveria então uma correlação entre o ato onírico, produzido na “outra cena” e o ato motor, encenado no palco do quotidiano?

Pensando nesses termos, poderíamos dizer que o fenômeno da repetição se manifesta, durante o sono por meio de formação onírica do inconciente e, em estado de vigília, a repetição – ocasionada pela tuché, o encontro sempre perdido frente ao real – se daria por meio da encenação de um texto cujo dramaturgo foi barrado na porta da consciência.

*

Voltando ao percurso do seminário (II, §18), Lacan revela o que gostaria que fosse retido por seus ouvintes: aquilo que é fulcral a respeito desse “encontro como para sempre perdido”.

O lugar do real tem precedência e determina a função de repetição; real que vai do trauma à fantasia, sendo a fantasia a tela que o disfarça. Essa realidade, o acidente, o barulhinho, que pode levar ao despertar só tem o condão de fazer acordar em razão de uma “outra realidade escondida atrás da falta daquilo que tem o lugar de representação”, a pulsão (Trieb) (II, §19) Lacan introduz aqui a noção de pulsão, mas nos adverte que é algo ainda a ser elaborado futuramente.

Quanto ao real, temos que procurá-lo para além do sonho, do disfarce, por detrás da falta da representação que é falsificada por algo que lhe faz as vezes em seu lugar (tenant-lieu).

Lacan conclui esse momento da aula afirmando que é o real que comanda, em última instância, nossas atividades. É o que a psicanálise nos revela.

*  *  *

ANOTAÇÕES (relativas à parte III do capítulo não apresentadas durante a exposição):

(III, §1) Tanto em Kierkegaard como em Freud, não se trata de repetição no sentido de um retorno da necessidade (besoin). Esse retorno visa ao consume que satisfaz um apetite. A repetição, por outro lado, pede algo de novo (por meio do aspecto lúdico). Lacan, na parte final de sua lição, aborda outra dimensão do conceito de repetição até então não mencionado.

[Em “Além do princípio do prazer”, Freud aborda a repetição da cena traumática (e do desprazer) por meio de uma análise do jogo infantil, especificamente do jogo da carretel, o “fort-da” do bebê…]

(III, §4) No jogo, exigi-se o novo, mas esse deslizamento para algo novo esconde o verdadeiro segredo do aspecto lúdico: a diversidade radical da repetição em si mesma.[8]

(III §6) Com o exemplo do jogo da bobina, Lacan articula o lugar da falta que se apresenta ao bebê – o lugar deixado pela ausência de sua mãe – a borda do berço/fosso e a criação lúdica que se constroi em torno dessa experiência ao modo de um feitiço: o jogo da bobina que responde à ausência por meio de uma “automutilação a partir da qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva”.[9]

A bobina não é a mãe reduzida a um pequeno objeto manipulável, como as cabeças encolhidas pelos Jivaros.

Enfim… como articular o conceito de repetição com o jogo da bobina? Lacan diz que o conjunto da atividade simboliza a repetição.[10] Não a repetição da necessidade (besoin) do retorno da mãe, para o qual bastaria o chôro. É a repetição da partida da mãe como causa da Spaltung, a divisão, no sujeito, superada pelo jogo de alternância entre fort e da.

(III §9) Finalizando, Lacan diz que sua explicação da função da tuché será essencial para corrigir aquilo que é o dever do analista ao interpretar a transferência. Anuncia que, na próxima lição, tratará do que é a originalidade da análise, o fato de não balizar a ontogênese psicológica nos supostos
“estados” (como se pudessem ser observados em termos biológicos). F. Dolto se levanta contra isso em sua pergunta após a lição de Lacan.


[1] Pag 59

[2] Pag 60

[3] (Traumdeutung, início cap VII) adaptado [Ed. Nova Fronteira]

[4] Pag. 63

[5] http://staferla.free.fr/S11/S11.htm

[6] Não deixa de ser interessante o fato de que a palavra francesa para o ensaio de uma peça de teatro seja répétition.

[7] Standard, vol. XII, pag 165.

[8] Para exemplificar essa tese, Lacan evoca o exemplo da criança que quer ouvir a mesma história repetidas vezes de forma idêntica, ritualizada, palavra por palavra. Em seguida, traduz em termos psicanalíticos o que se dá nesse caso… (nas 3 últimas frases do §4)

[9] Pag 66

[10] Pag 67


Encontro #6

Encontro #7

Encontro #8
Capítulo VIII, “A linha e a luz”

Joselita Rodrigues Rodovalho

Psicanalista e membro da ELP-Brasília

Um ponto de vista sobre a fundamentação de Jacques Lacan da noção “do olhar como objeto a minúsculo”, e outros mais

“há sempre na linha um ponto de luz que delivra

Servirei aqui da designação do sujeito que deu Lacan no texto: o “sujeito em sobrevoo”, para levá-los a sobrevoar alguns pontos que alumiei.

Duas indagações iniciais foram necessárias para dar a partida. Concernem ao sujeito que é próprio da psicanálise. Primeira: “Pai, não vês…?”, pergunta feita a propósito de um sonho destacado por Freud no texto da “interpretação dos sonhos” (1900). “Pai, não vês…? invoca algo ao Outro no campo da linguagem. A segunda questão me vem com uma frase título de Live da psicanalista Teresa Melloni RJ: “o que resta do pai no final da análise?”

– “O que resta do pai…?” põe em cena a concepção de retorno, um retorno dos restos retalhados do pai que não cessa de não se escrever, insistência própria do real que tende a se irromper (Tiche) em uma bateria de significantes estruturada, e que se repete reproduzindo-se espontânea e automaticamente. Mas quando sofre a irrupção do real o sentido ali estabelecido se reduz, devido a fratura da cadeia, ao ponto zero da significação ali efetuada, ao non sense. “O zero grau de significação”, segundo Humberto Eco. Trata-se do esvaziamento do sentido por demais consistente naquela bateria de significante que se automatizou.

– O que posso querer com essa introdução? Em primeiro lugar tentar alcançar os propósitos de Lacan acerca de “a linha e a luz” que me pareceu ser a revelação do nascimento do sujeito, o sujeito posto em questão no campo da psicanálise, e me levou a indagar, nesse contexto, sem a menor esperança de uma resposta prévia e breve, quiçá uma resposta aprés coup: quem nasceu primeiro: o sujeito ou o objeto? Constituíram-se em concomitante dependência?

Destaco alguns pontos relevantes:

– No plano do funcionamento automático, no automatismo de repetição (Automaton), onde vige o deslocamento sem estofo de uma bateria de significantes, não cabe nem percepção e nem consciência do que se faz, a bateria tem vida própria, funciona espontaneamente regida pelas suas próprias leis.

– Na esquize do olho e do olhar, ao procurar o olhar ele desaparece. No pensamento de Sartre em “O ser e o nada” (1949) a apreensão do olhar só é possível no olhar de Outrem que tem a potência para mover o ser olhado ao ponto de uma vergonha reveladora da queda do ser ao seu nada-ser. Ao nada-ser para o outro, posto que ao ser olhado o olhar desaparece.

– Lacan contesta essa formulação por acreditar que a experiência proposta por Sartre não traduz a experiência original do olhar pela apreensão do olhar na direção do desejo do Outro.

– Se não se faz um valor da dialética do desejo, não se compreende por que o olhar do Outro desorganizaria o campo da visão, pois o sujeito em causa não é o da consciência reflexiva, mas do desejo. Aqui, somos reconduzidos ao paradoxo freudiano da relação percepção/consciência elaborado no Entwurf (1985).

– Tais diretrizes já nos aponta para uma distinção fundamental nesse texto de Lacan, “a linha e a Luz”, entre o olho do ponto geometral e o chamado “olho-voador”, oculus volantesque vamos encontrar na anamorfose dos embaixadores, quadro de Hans Holbein (1533).

– Esse estranho objeto que nos captura para dentro do quadro não é o olho, é a enigmática relação do olhar que dele se destaca com o desejo. “A dependência do visível em relação àquilo que nos põe sob o olho do que vê […] esse olho é apenas a metáfora de algo que melhor chamarei o empuxo daquele que vê – algo de anterior ao seu olho […] é a preexistência de um olhar […] – contudo, eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte” (p.73; edição de 1979).

A função do olho

– Quando é que aparece a função do órgão olho no vivente de modo geral?

– A relação do sujeito com o órgão está no coração de nossa experiência. Entre todos os órgãos com que lidamos o seio, as fezes, está o olho… e a voz.

O esquema dos dois triângulos isósceles apresentados no início do texto (p.90; edição de 1979) significa que:

– No ponto para onde confluem e se cruzam, as duas metamorfoses, o crossover do triangulo à esquerda (objeto/imagem) com o triangulo à direita (quadro/ponto luminoso), nasce a percepção. Aqui é possível antecipar alguns elementos da tese de Lacan sobre “a linha e a Luz”. A percepção não é um fenômeno bruto, estanque e instantâneo (que é também a elaboração de Freud no Entwurf), ela se forma numa linha sucessória de fenômenos com a marcação dos traços dos crossovers acontecidos.

– O esquema também demonstra o que uma certa utilização do sistema ótico deixa escapar na visão, por exemplo, um “ponto cego” (escotoma) que é uma área da retina que não tem receptores de luz. Esse ponto cego remeteu Lacan à obra de Denis Diderot “carta sobre os cegos para uso dos que enxergam” (1749). Nesta carta Diderot demonstra como, de tudo o que a visão nos entrega do espaço, o cego é capaz de dar conta por intermédio da percepção tátil, de reconstruir um campo visual próprio, criar imagens, ainda que ambíguas.

– Para nós, que nos interessamos pelo sujeito da psicanálise, a dimensão da perspectiva geometral nos permite ver como o sujeito é capturado e aprisionado no campo da visão. Remeto-os ao vídeo do quadro “Embaixadores” no YouTube (https://youtu.be/S-XST2zfK0g).

– Segundo a interpretação de Lacan dos Embaixadores, ali, o objeto flutuante, a anamorfose artística, assume a função do olho que está para o olhar. Tal função serve para nos fisgar na armadilha do olhar que se desprende do órgão olho, e, enquanto sujeito capturado, somos atraídos para dentro do quadro, tal qual somos atraídos para as profundezas do lago pelo canto das sereias.

– Esse olho que nos olha no quadro nos reflete o nosso próprio nada, segundo o já citado Sartre, esse olhar Outrem nos despe do nosso próprio ser, nos reduz ao néant de nossa existência mesma; mas também nos reduz a um apelo de ação desiderativa manobrada pelo desejo do Outro que me divide entre esse ser que me tornei e o nada que sou ali mesmo onde sou olhada, mas incapaz (incapacitado pela própria estrutura do campo visual aonde nos situamos) de me ver. (recomendo a leitura do capitulo I da terceira parte do citado livro de Sartre – a existência do Outro, p. 287/326).

– Lacan conclui sobre a técnica da anamorfose artística como um recurso sabiamente utilizado, cuja dimensão geometral da visão cativa o sujeito, demonstrando, assim, uma relação evidente ao desejo, evidentemente, muito enigmática.

I

Lacan pergunta: “o que a luz nos ‘delivra’?”

– Com essa indagação busca, na perspectiva de Merleau-Ponty, a fenomenologia da percepção tratada no livro “o visível e o invisível”, especialmente a parte em que será abordada a questão do Quiasma: o entrelaçamento (crossover).

– Essa parte I do seminário (p.92/96, edição de 1979) torna-se bastante ininteligível se não a contextualizarmos no plano da obra de Merleau-Ponty, por sua vez muito densa. Essa obra é fruto do trabalho de compilação de Claude Lefort dos manuscritos inacabados de Merleau-Ponty devido sua morte súbita e precoce em 03/05/1961. Lacan nos obriga a percorrera-la a fim de decifrar alguns enigmas das distorções da percepção tradas em três perspectivas idealistas, nomeadas solipsismo: o solipsismo monista, o dualista e o dialético.

– Merleau-Ponty demonstra as vicissitudes do nosso campo perceptivo com relação a perspectiva do olhar, o ponto de vista. Então, no capítulo do entrelaçamento, será precisado não somente em uma única divisão (esquize) entre aquilo que olha e aquilo que é olhado. Ele apresenta uma sucessão de divisões em linha que não formam um labirinto, mas sim pontos lineares de entrelaçamentos que vão formando reviramentos em direito/avesso, em fora/dentro, em é/não-é, e assim simultânea e sucessivamente.

– O próprio do visível é ser a superfície de uma profundidade insondável e misteriosa, possibilitando a abertura para outras visões além da minha. Quando elas se realizam acusam os limites da nossa visão, salientando assim que a “ilusão solipsista” que acredita ser solus ipse (só ele mesmo) é um modo de concepção monista da existência.

– O olhar envolve, apalpa, segundo Diderot, as coisas que vemos. O objeto que vemos, não nos chega pronto e acabado, não o percebemos direta e instantaneamente, pois trata-se de um Flesch de luz que cega (alusão ao instante de apreender), faz um apagão das coisas visíveis. É preciso tempo (alusão ao tempo para compreender) para que incandescência da percepção se dissipe para que se possa começar a enxergar (perceber, num segundo tempo, o percebido).

– Nessa matéria do visível e do invisível encontram-se inúmeras distorções de ótica: armadilhas do entrelaçamento para as nossas “ilusões de ótica”. Com o conceito de quiasma Merleau-Ponty encontra na obra de Sartre, “o ser e o nada”, a ocorrência do entrelaçamento do olho e do olhar, onde se produz a esquize dos dois. Divisão que Lacan vai se servir na dedução de que não há uma única divisão das duplas vertentes que a função da visão apresenta, e que não se manifesta para nós como um dédalo, pois, à medida que distinguimos na função da visão a linha, percebemos vários pontos de luz que se entrecruzam para alumiar a visão.

– Então, como tentar apreender o que de fato nos escapa na estruturação ótica do espaço visível?

– Pela ótica dos filósofos percebe-se que eles só se debruçam sobre o embuste da percepção. Entendem que a percepção encontra o objeto onde ele está e que a sua aparência é devido a ruptura do espaço que a sustenta, temos o exemplo clássico da vara no espelho d’agua que nos parece fraturada.

– O ilusionismo, na opinião de Lacan, da dialética clássica em torno da percepção se atém ao fato de se tratar da visão geometral, isto é, a visão situada num dado espaço não é, em essência, o visível. Isso, na perspectiva filosófica, quer dizer que o essencial do visível do ser está em outro lugar que não na linha de propagação da luz, mas sim num ponto luminoso do fenômeno de refração da luz, tal qual o exemplo da vara no espelho d’agua.

Pois bem, a função do quadro se relaciona com a função do olhar, e para Lacan essa relação de modo algum é armadilha para o olhar que pode induzir à crença de um desejo de ser olhado, tipo: “você me viu, viu?” Não é isso o de que se trata na tese de Lacan, ele crê aqui numa relação mais complexa ao olhar do aficionado.

O pintor oferta para aquele diante do seu quadro algo assim: “Che Vuoi?” “Queres olhar? Então veja isso!” Ele oferece uma bela pastagem para o olho (uma fonte de satisfação, Quelle freudiana), e ao mesmo tempo convida aquele a quem o quadro é apresentado a depor, ali o seu olhar, depor, abrir mão, entregar-se, sujeitar-se…

– Para abrandar o sentimento da abnegação, Lacan atribui a esse gesto um efeito apolíneo, pacificador da pintura, uma certa simbologia de medidas a serem tomadas em que a arte procura cobrir as mazelas da existência com uma cortina estética, perfeita e bela, tornando-nos capazes de resistir ao pessimismo através de um ilusão da realidade criada para a arte – contemplação do que se faz representar como idealização.

– Mas, como sempre diz um psicanalista amigo meu, o psicanalista não se engana aí, pois sabe reconhecer que o que comporta uma suposta demanda de amor traz em seu bojo um imperativo categórico, uma exigência que comporta abandono, deposição do olhar para a pastagem do olho que olha desde o quadro.

Contudo, o expressionismo não tão apolínio assim, se mostra mais afeito ao hedonismo, não deixa de inventar a realidade em um movimento mais humano, traz para cena o humus de que somos feito. Por exemplo, “O Grito” de Edvard Munch valoriza mais os aspectos estranhos, inquietantes e angustiantes no “ato de pintar”. Aqui vemos uma oferta mais afeita ao hedonismo no sentido mesmo de Freud, cujo propósito da vida é abrir caminhos para o prazer, para a satisfação da pulsão por todas as suas vicissitudes. O que é pedido pelo olhar da mancha do quadro é, nada mais nada menos que uma satisfação pulsional.

– Falando em pulsão vamos então ao campo escópico que é, afinal, toda a construção que faz Lacan do tema geral da esquize do olho e do olhar. O que fascina Lacan no órgão olho é a “fóvea” que segundo uma oftalmologista é a região mais nobre do olho. Que mistério tem essa fóvea? É um ponto de convergência de todos os nervos óticos formando uma espécie de “buraco negro” entorno do qual se constitui a mácula, a mancha ou ponto cego onde, grosso modo, se formam as imagens, não seria também, por acaso, o furo no imaginário que se entrelaça ao “umbigo do sonho” de Freud?

– Com referência ao inconsciente é da relação ao órgão como fonte pulsional (Quelle), que se trata, ou seja, uma relação ao falo, cuja significação é ser o “significante da falta”, ao que poderia ser atingido de real na visada do sexo (presença/ausência do órgão).

– É, pois, na medida em que, no âmago da experiência do inconsciente lidamos com esse órgão – em referência ao complexo de castração no plano da organização da “sexuação” do sujeito – é que correlativamente ao olho pode se estabelecer uma semelhante dialética, a saber que, na dialética do olho e do olhar há um logro fundamental, pois, entre o olho e o olhar produz-se uma hiância, uma esquize fundamental que separa a fonte pulsional (Quelle) do objeto da pulsão (objekt), realizando aqui um princípio de Freud: “a passagem do autoerotismo ao narcisismo é necessário um novo ato psíquico”. Aqui retorno a questão que fiz no início desse texto: há uma concomitante dependência no alvorecer do sujeito e do objeto?

Considerações finais

– Na dialética da aparência e de seu mais além, há apenas o olhar e nenhuma coisa outra mais do que isso. É nessa relação que se situa o olhar como órgão.

– No nível da pulsão escópica, em sua primariedade, a pulsão já estará presente na medida em que se produzirá, forçosamente, a cisão entre fonte pulsional (Quelle) e o objeto (Objekt) para que aconteça a saída do autoerotismo ao narcisismo primário, mediante um novo ato psíquico, segundo formulação de Freud. É dessa formulação que Lacan deduz o estádio do espelho para o engajamento do sujeito na estruturação do narcisismo no campo do imaginário, onde irá se instaurar a função do objeto pequeno a discernível em todas as outras dimensões da pulsão e suas vicissitudes.

– Aqui Lacan formula a sua concepção do objeto pequeno a como aquilo que cai do sujeito a se constituir (em ato), no instante mesmo em que o objeto (Objekt) se separa do órgão, fonte (Quelle) da pulsão. Segundo Freud, uma divisão necessária entre fonte e objeto para que haja a causação do “novo ato psíquico” na passagem do autoerotismo ao narcisismo.

– É, pois, no nível da pulsão escópica, no eixo sincrônico da linha horizontal da experiencia do sujeito, ocorrerá o crossover do eixo diacrônico, na verticalidade, de tudo que irá dar luz na existência da sua história.

– No nível da pulsão oral, já instaurada a dialética da demanda do Outro e da demanda aoOutro é o nada que se faz, ou seja, aquilo que o sujeito perde ao ser desmamado se faz nada, não há mais nada para ele. Na anorexia mental, por exemplo, o que o sujeito come é o nada que o dom do amor tem para ofertar. Aqui Lacan faz uma referência ao seminário sobre a “relação de objeto” no ano de atentando para o fato de que o objeto do desmame pode assumir a função, no nível da castração, de privação.

– No nível da pulsão anal, se instaura o lugar da metáfora, isto é, um objeto por outro: oferta-se as fezes no lugar do falo (-φ). A pulsão anal se caracteriza pelo domínio da oblatividade, do presentear, da oferenda feita ao Outro. Lá onde somos pegos desprevenidos, lá onde não podemos, por motivo da falta, dar o que nos é pedido, só podemos contar com o recurso da frustração que é dar o que não se tem, pela impossibilidade estrutural de dar o que se pede. Aqui Lacan dá sua nota: “é por isso que, em sua moral, o homem se inscreve no nível da pulsão anal”. (p. 101, edição brasileira 1979).

– Retornando a pulsão escópica e a pulsão invocadora, neste nível de primariedade da constituição subjetiva, originariamente, não estamos no registro do pedido, da dialética da demanda que é própria das duas pulsões anteriores, estamos no puro registro do desejo, do império do desejo do Outro. Quanto a pulsão invocadora, a mais próxima da experiência do inconsciente, é a voz quem comanda a cena toda, pois não é ainda muito bem definida para o sujeito a voz como perda de órgão. A pulsão invocadora só é capaz de uma sonoridade que exorta o sujeito de modo imperativo, “imperativo categórico” ressalta Lacan.

– O imperativo categórico é uma das principais noções da filosofia de Immanuel Kant. Sua ética e moral têm como base esse preceito do “imperativo categórico”. Para Kant, tal preceito representa o dever de toda pessoa de agir conforme os princípios que ditam as regras para todos, pretende-se que seja uma lei universal da natureza humana. Recomendo a leitura do texto de Lacan “Kant com Sade” in Escritos.

– E para finalizar, de modo geral, a relação do olhar com o que queremos ver é sempre um logro. O sujeito se apresenta como o que ele não é, e o que ele se dá a ver não é o que ele pode ver. Por essa razão o olho absorve a função do objeto pequeno a no nível da falta, do (-φ).

CQD

Isso é tudo como se queria demonstrar nessa disciplina do comentário do texto de Lacan “a linha e a luz”. Essa linha alinhava até esse ponto de luz, a finalidade dos seus propósitos com o seminário “os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”.

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Leitura explicativa do capítulo XIV, “A pulsão parcial e seu circuito”
André V. L. Niffinegger

psicanalista e membro da ELP-Brasília

3 de setembro de 2020

Nesta lição, Lacan retoma seu discurso sobre a pulsão. Relembra que iniciou sua abordagem do conceito após ter postulado que a transferência é o que se manifesta, na experiência, como a atuação (mise en acte) da realidade do inconsciente. Realidade esta que Lacan afirma ser a sexualidade.

Lacan se debruçará principalmente sobre esse ponto, sobre o sentido e alcance dessa afirmação.

Iniciando a reflexão, diz que a sexualidade, ou a ação que a presentifica, é desnudada pelo aparecimento do amor, e pergunta aos ouvintes: “– O amor representa o ápice inequívoco que torna presente a sexualidade no aqui e agora da transferência?”. “– De modo algum”, responderia Freud em A pulsão e seus destinos (texto trabalhado por Lacan nesta lição).

O artigo de Freud divide-se em duas vertentes: na primeira parte, há a decomposição da pulsão; na segunda, o exame do ato do amor (das Lieben). Lacan nos alerta para o fato de que tratará do segundo tema.

Freud é claro em dizer que o amor de modo algum poderia ser considerado como o representante da convergência do esforço do sexual, i.e., da totalidade que resumiria a essência e função da sexualidade (die ganze Sexualstrebung).

Em uma das traduções brasileiras, esta é a passagem mencionada:

O caso do amor e do ódio adquire interesse particular pela circunstância de resistir ao enquadramento em nossa descrição dos instintos. Não se pode duvidar da íntima relação entre esses dois afetos contrários e a vida sexual, mas é preciso naturalmente se recusar a conceber o amor como um instinto parcial particular da sexualidade, de maneira igual aos outros. É preferível ver o amor como expressão da totalidade da tendência sexual, mas com isso não se vai muito longe também, e não se sabe como entender um contrário material dessa tendência.[1]

Segundo Lacan, o artigo está aí para mostrar que, em se tratando da finalidade biológica da sexualidade, ou seja, a reprodução, as pulsões são parciais. Acrescenta que as pulsões, em sua estrutura, estão vinculadas a um “fator econômico”. À primeira vista, Lacan parece se referir a uma das três “polaridades que governam a vida psíquica”, no caso, a polaridade econômica prazer-desprazer, valendo-se diretamente de Freud:

Resumindo, podemos sublinhar que os destino dos instintos consistem essencialmente no fato de que os impulsos instintuais são submetidos às influências das três grandes polaridades que governam a vida psíquica. Dessas três polaridades, pode-se designer a da atividade-passividade como a biológica, a do Eu-mundo exterior como a real, e por fim a de prazer-desprazer como a econômica.[2]

Por que qualificar esse aspecto com o adjetivo “econômico”? Vejamos. Lacan ensina que o fator econômico depende das condições de operação do princípio do prazer no âmbito do Real-Ich(Eu-realidade). O Real-Ich é concebido como o sistema nervoso central em sua função de controle homeostático das tensões internas. Assim, em razão da realidade do sistema homeostático, a sexualidade entra em jogo sob a forma das pulsões parciais.

Nesse ponto, Lacan subitamente avança um conceito de pulsão, articulando numa só frase pulsão, inconsciente e sexualidade. Ele diz: “A pulsão é precisamente a composição, o arranjo [montage] por meio da qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que deve se conformar à estrutura de lacuna/hiato [béance] do inconsciente”[3] [tradução minha]. É um conceito ainda obscuro…

Para avançar a explicação, Lacan nos situa entre os dois extremos da experiência analítica. De um lado, o reprimido/recalcado e o sintôma – homogêneos e redutíveis às funções significantes em estrutura sincrônica. Na outra extremidade, a interpretação, estruturada metonimicamente (dimensão diacrônica), análoga ao desejo.

Dominando a economia desse intervalo entre os extremos, Lacan situa a sexualidade, sob a forma das pulsões sexuais. Se assim não o fosse, a experiência analítica seria apenas uma prática divinatória, segundo Lacan.

Mais um passo e Lacan evoca a sexualidade infantil nos termos em que Freud a apresenta em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, ou seja, a sexualidade polimorfa, aberrante. Lacan, obediente a seu “retorno a Freud”, critica a leitura apressada que não enxerga o que essa sexualidade representa em essência, isto é, que todos os sujeito, da criança ao adulto, estão em pé de igualdade no que diz respeito à instância da sexualidade. É uma afirmação que parece absurda, sob a perspectiva do senso comum. Pois bem, em que termos esse argumento será viável?

Os sujeitos estão em pé de igualdade porque sua relação com a sexualidade se inscreve nas redes significantes, responsáveis pela constituição subjetiva. A sexualidade apenas se realiza por meio da operação pulsional no que as pulsões têm de parcial em relação à finalidade biológica da sexualidade (a reprodução). Essa análise de Lacan lança luz sobre o significado do adjetivo “parcial” quando qualifica o substantivo pulsão.

A linha argumentativa toma uma nova inflexão. Lacan agora associa, numa só frase, três noções cruciais – sexualidade, desejo e corpo – afirmando que a integração da sexualidade à dialética do desejo pressupõe uma espécie de aparelhamento do corpo.[4]

Sem desenvolver essa idéia, Lacan finaliza esse tópico com o que seria o obstáculo ao bom entendimento do conceito de pulsão, isto é, não enxergamos que a pulsão representa, mas apenas representa, e parcialmente, a “curva de realização da sexualidade, cujo término é a morte. De fato, o ser sexuado dirige-se à morte.

É nesse ponto que Lacan faz incidir o fragmento de Heráclito que havia escrito no quadro-negro logo no início da lição. A tradução do grego seria aproximadamente “o nome do arco é vida, sua obra é a morte”. O fragmento faz sentido se atentarmos para o jogo de palavras do original grego, utilizando as palavras homônimas que se referem à vida e ao arco. Para situar a pulsão na economia psíquica, Lacan termina a reflexão atribuindo ao modo de existência pulsional o que ele chamou de “dialética do arco-e-flecha”.

2

Lacan retoma o texto de Freud e aponta para o caminho ali trilhado para abordar o tema da pulsão: recursos linguísticos, gramaticais, jogando com as formas verbais ativa, passiva e o reflexivo. Para Lacan, esse método revelaria apenas o envelope, a superfície do fenômeno:

Resultados diversos, e mais simples, são proporcionados pela investigação de outro par de opostos, o dos instintos que têm por metas olhar e mostrar-se. (Voyeur e exibicionista, na linguagem das perversões.) Neste caso pode-se estabelecer os mesmos estágios do anterior: a) olhar como atividade dirigida a um outro objeto; b) o abandono do objeto, a volta do instinto de olhar para uma parte do próprio corpo, e com isso a reversão em passividade e a constituição da nova meta: ser olhado; c) a introdução de um novo sujeito, ao qual o indivíduo se mostra, para ser olhado por ele. (…) O esquema para o instinto de olhar poderia ser este:[5]

O fundamental é compreender a estrutura de vai-e-vém, o movimento de ida e retorno em caráter circular esboçado no artifício grammatical no texto de Freud.

Lacan diz ser notável que Freud tenha escolhido a Schaulust (o prazer de ver) e o sadomasoquismo para ilustrar esse tráfego pulsional.

Quanto a essas duas pulsões, Freud sublinha que não há apenas dois tempos, mas três. Temos então que distinguir o retorno no circuito pulsional do que aparece em um terceiro tempo, fase em que “aparece um novo sujeito”. Quando a pulsão fecha seu trajeto circular, aparece um sujeito no “nível do outro”, afirma Lacan. E é somente aí que se perfaz a função da pulsão.

Lacan chama nossa atenção para o esquema de um circuito desenhado no quadro-negro:

tableau im1

O esquema esboça uma topologia simples com os elements do conceito de pulsão. Há uma flecha em forma de curva, ilustrativa do movimento de ida e volta. A origem da flecha está associada a Drang (pressão ou impulso da pulsão). Vemos um círculo como em um plano inclinado, formando uma oval, que delimita uma superfície que Lacan define como borda, análoga ao Quelle, a fonte pulsional, i. e., a zona erógena. A tensão pulsional é sempre boucle (anel, fivela, circuito, etc) e está intimamente ligada ao seu retorno à zona erógina.

Lacan quer lançar luz sobre o mistério da modalidade de satisfação da pulsão sem que ela tenha atingido seu suposto alvo (but), a finalidade biológica da cópula reprodutiva.

Qual é então o verdadeiro alvo da pulsão parcial? Lacan faz suspense quanto à resposta e volta-se para a noção de alvo em sua equivocidade, cuja polissemia é captada pela língua inglesa.

O inglês nos fornece as palavras aim e goal, dualidade que Lacan utiliza para, respectivamente, evidenciar os sentidos de trajeto e de realização do objetivo ou acerto do alvo.

Se utilizarmos o futebol como metáfora, teríamos a distinção entre o tiro do atacante que lança a bola em direção ao gol adversário e a bola que ultrapassa o goleiro e atinge a rede, efetivamente marcando um ponto.

Lacan avança uma conclusão hipotética: se a pulsão pode ser satisfeita sem atingir a finalidade biológica, resta-nos qualificá-la de pulsão parcial, sendo sua finalidade o próprio retorno em circuito.

Na metáfora do futebol, seria um jogo em que um boomerang faria às vezes da bola, e o jogador marcaria o gol tão somente com o retorno do que havia lançado.

Cabe então perguntar o que explicaria essa satisfação do auto-erotismo da zona erógena.De fato, essa satisfação não é nada intuitiva em termos teóricos. Se partirmos do paradigma instinctual, ela não fará sentido algum. Para Lacan, há algo que permite explicar e distinguir esse modo de satisfação pulsional autoerótico: um “objeto”. Objeto que tendemos a confundir com aquilo em torno do qual a pulsão encerra-se no encontro da satisfação. Esse objeto é nada mais do que a presença – ideia aparentemente paradoxal – de um vão, de um vazio, ocupável em última instância por qualquer objeto, no sentido ordinário do termo. Nesse ponto, Lacan nomeia esse vazio com o rótulo teórico “objeto perdido pequeno a”.

Boa parte da elaboração teórica de Lacan é condensada em matemas (mathème), fórmulas algébricas compostas de símbolos que representam postulados, conceitos ou os modos como se relacionam em uma estrutura.

Um dos elementos centrais da “matematização” descritiva do funcionamento do insconciente é o objeto “a”. Para representar o aquela “presença de um vazio”, pressuposto gnosiológico do circuito pulsional, Lacan escolheu a primeira letra do alfabeto e, não me parece coincidência, a inicial da palavra francesa autre.

Curiosamente, a escolha do “a” para representar o objeto apto a abarcar qualquer outro objeto remete a um célebre exemplo literário. Em um conto publicado em 1945, J. L. Borges descreve um pequena esfera que condensava, em seu volume, toda a extensão do espaço, todos os lugares possíveis. A essa pequena esfera fantástica, Borges deu o nome aleph, primeira letra dos sistemas de escrita das línguas semíticas. A analogia à invenção de Lacan salta aos olhos. Que todos os temas da psicanálise já foram tratados nas artes, disso Freud já nos havia prevenido.

Essa letrinha, esse objeto lógico não é, segundo Lacan, a origem da pulsão oral, por exemplo. Não teria a função de representar o alimento primitivo, ele é introduzido na teoria que explica a lógica pulsional, a partir do fato de que nenhum alimento tem o condão de jamais satisfazer a pulsão oral, a não ser pela aptidão pulsional a contornar o objeto eternamente perdido.

Estabelecido o circuito pulsional e seus elementos, Lacan dá mais um passo e levanta a questão de saber como encaixar esse circuito na dinâmica pulsional mais ampla, no conjunto das pulsões parciais e na suposta sucessão de fases do amadurecimento libidinal.[6]

Responde categoricamente que “não há nenhuma relação de dedução ou gênese de uma pulsão parcial à pulsão seguinte”.[7] Não há uma metamorfose natural entre elas. Por exemplo, a passagem da pulsão oral à anal não se dá via maturação, mas pela intervenção de algo estranho ao campo da pulsão, dirá Lacan, pela intervenção e redirecionamento (renversement)[8] da demanda do Outro.

O último parágrafo desse segundo movimento da lição nos surpreende com a inserção repentina do conceito de sujeito na discussão da estrutura pulsional.

Os argumentos prévios – nas palavras de Lacan – nos levam à manifestação da pulsão à maneira de um sujeito acéfalo, já que tudo se articula em termos de tensão. O objeto da pulsão está situado no nível dessa subjetivação sem sujeito, o que Lacan chamou metaforiacamente de uma subjetivação acéfala, uma estrutura que representa uma face da topolgia. A outra face é que de um sujeito em sua relação ao significante, um sujeito furado.[9]

Em seguida, Lacan passa a articular a pulsão ao inconsciente por meio de um terceiro elemento. Dirá: “Pois bem!, porque há algo, no aparelho do corpo, estruturado da mesma maneira [em que se estrutura o sujeito pela distribuição dos investimentos significantes] a pulsão presta-se ao seu papel no funcionamento do insconciente em razão da unidade topológica dos hiatos/lacunas em jogo”.[10]

O terceiro elemento a que aludi – e aqui saio da perspectiva explicativa e para ousar uma interpretação – é a homologia topológica entre os orifícios e bordas corporais e as descontinuidades da estrutura significante. Ou seja, o esquema da estrutura da pulsão, como esboçado por Lacan no quadro-negro, tem seu suporte na topologia corporal.

Marcel Czermak[11] ajudou-me a perceber essa relação do que chamei acima uma homologia topológica. Na clínica da psicose, especialmente, no tratamento de pacientes diagnosticados com síndrome de Cotard, o autor explica a lógica da fala e dos sintomas dessa psicose por meio da teoria de Lacan. Baseando-me em seu ensino oral e escrito, pude escrever em um artigo recente:

Parece óbvio que nossos orifícios anatômicos coincidem com os furos topológicos. Nas melhores hipóteses, bem ou mal, eles se superpõem. Contudo, a experiência clínica demonstra que há sujeitos para os quais não há essa coincidência. Hipótese que implica a questão de saber o que é um furo para o parlêtre. Para tentar respondê-la, Czermak avança uma fórmula que ele atribui a Lacan: « les pulsions ne se raccordent à nos orifices que par faveur anatomique ». Um favor não equivale a uma obrigação e, efetivamente, o que nós consideramos ser orifícios naturais não os são senão em relação às nossas certezas neuróticas. A coincidência entre os efeitos da linguagem e a anatomia não é da ordem do necessário.[12]

A preocupação de Czermak, no caso, é com a situação de indistinção dos orifícios (despécification des trous) e suas consequências para o funcionamento orgânico de seus pacientes psicóticos. Nossa preocupação é mais singela: esclarecer como Lacan concebe o conceito de pulsão.

3

No terceiro e último movimento da lição, Lacan nos convida a Freud e sua análise da Schaulust, a pulsão escópica, desdobrada no par ver/ser visto. “Os dois pólos desse par são uma só e mesma coisa?”, pergunta Lacan. Para tratar de responder à questão, invoca o campo da perversão.

Temos agora uma pedra no caminho. Lacan vê um enigma na abordagem de Freud: quer chegar a uma estrutura radical da pulsão escópica, porém sem situar o sujeito. Contudo, o que define a perversão é justamente, diz Lacan, a maneira como o sujeito aí se localiza.

O que é o voyeurismo? Onde está situado o sujeito e o objeto no momento do ato do voyeur ? O sujeito, diz Lacan, não está presente no ver, no nível da pulsão de ver. Está presente enquanto perverso, situando-se na chegada final do circuito representado pela flecha do esquema. O objeto é contornado e só assim o alvo é atingido.

No caso, “o objeto é aqui olhar (regard), e olhar que é o sujeito” que o atinge acertando o alvo na mosca. Podemos extrair dessa frase de Lacan o circuito, i.e., o movimento de retorno do esquema, em que aparentemente há uma equivalência sujeito-objeto pela mediação do olhar?

Retomando sua crítica à análise da instância do olhar em Sartre, Lacan diz que o sujeito não é surpreendido em seu voyeurismo (olhando pelo buraco da fechadura) pelo olhar no nível do outro. Lacan o corrige dizendo que o outro surpreende o sujeito enquanto este é inteiramente olhar ocultado. De fato, a pulsão escópica em sua satisfação perversa, digamos clássica, é o voyeur que fita escondido a cena erótica através da fechadura. Não se espera que o objeto da visão, o outro espreitado lance seu olhar em direção ao voyeur para que este alcance a fruição do ato.

“O olhar é este objeto perdido e, reencontrado repentinamente, emergente da vergonha uma vez introduzido o outro”[13] Nesse intervalo, o que o sujeito quer ver? Lacan responde: o que ele procura ver é o objeto ausência. O voyeur procura e acha a sombra atrás da cortina: não procura o falo, mas sua ausência. Aí está a ambiguidade que se nos apodera ao falarmos da pulsão escópica. O que olhamos é o que não pode ser visto.

O conceito de pulsão ficou um pouco mais claro. Lacan adiciona mais uma peça do quebra-cabeça, e podemos vislumbrar melhor a estrutura da pulsão, que ficou aparente graças à introdução do elemento designado como “outro”. Essa estrutura completa-se com o movimento de retorno, a sua “forma revertida”, que nas palavras de Lacan é a verdadeira pulsão ativa.

Quanto à vertente do masoquismo, Lacan se refere a um nó que dificulta compreender essa modalidade pulsional: a questão da dor infligida. Em Freud, temos:

A compreensão do sadismo é prejudicada também pela circunstância de que esse instinto parece buscar, além da sua meta geral (melhor, talvez: no interior dela) uma ação bem especial dotada de objetivo. Além da humilhação, do subjugamento, a inflição de dor. Mas a psicanálise parece mostrar que infligir dores não se relaciona com as originais ações do instinto dotadas de objetivo. A criança sádica não leva em conta a imposição de dor e não tem esse propósito. Uma vez efetuada a transformação em masoquismo, porém, as dores se prestam muito bem apara uma meta masoquista passiva (…). Quando sentir dores se torna uma meta masoquista, pode surgir também, retroativamente, a meta sádica de infligir dores, que o próprio indivíduo, ao suscitá-la em outros, frui masoquisticamente na identificação com o objeto sofredor.[14]

A possibilidade da dor, em se tratando da pulsão sadomasoquista, se dá no momento em que o circuito se fecha após a reversão, uma vez que o outro tenha entrado em jogo e o sujeito situa-se como parada final da pulsão, apto a sofrer a dor pela ação do outro. Emerge então o sujeito sádico pela identificação ao objeto sofredor.

Lacan, antes de finalizar a exposição, lança ao seu auditório uma pérola, ao articular pulsão (perversa?) ao princípio do prazer: “Aqui se revela do que se trata na pulsão: a via da pulsão é a única forma de transgressão permitida ao sujeito em relação ao princípio do prazer.”[15]

As pulsões parciais instalam-se no limite da manutenção da homeostase (função do princípio do prazer, por meio da diminuição da tensão pela polaridade prazer-desprazer). A incidência da pulsão parcial bloqueia o princípio do prazer. Fato que testemunha que, além do Real-Ich, há outra realidade que intervém, e que, em última instância configurou a estrutura e a diversidade do Real-Ich. Esse é um tema para as exposições futuras do Fórum de Debate.

[1] FREUD, Sigmund. Introdução ao narcissismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas, volume 12; tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 72.

[2] Idem, p. 80.

[3] (S11, xiv, I, 4)

[4] (p.161)

[5] Idem, p. 68.

[6] Alerta-nos para o fato de que se deve considerer a pulsão uma força constante (konstant Kraft), e sua consequente tensão estacionária (que não prograde nem regride, que não aumenta nem diminue). Quanto a isso, Lacan retoma a imagem da atividade vulcânica utilizada por Freud, as erupções sucessivas de lava. Metáfora que nos permite visualizer a estrutura fundamental esquematizada previamente por Lacan. Algo que sai de um orifício e sua borda, que replica sua estrutura fechada, seguindo um trajeto de retorno e cuja consistência é garantida pelo objeto a ser contornado. No texto de Freud: “Assim, encontramos a essência do instinto, primeiramente, em suas características principais: a origem em fontes de estímulo no interior do organismo, o aparecimento como força constante; e derivamos daí um outro de seus traços: sua irredutibilidade por meio de ações de fuga.” (FREUD, Sigmund. Introdução ao narcissismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas, volume 12; tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 55.)

[7] (p.164, 4 in fine)

[8] [reviravolta, reorganização ou inversão, são traduções possíveis]

[9] (p. 167 in fine).

[10] (p. 165, 3)

[11] Marcel Czermak é psychiatre des hôpitaux honoraire no hospital Sainte-Anne de Paris, psicanalista, membro da Association Lacanienne Internationale-ALI e fundador da École psychanalytique de Sainte-Anne. É co-redator do Journal français de psychiatrie. Foi aluno e colaborador direto de J. Lacan, especialmente na teorização e tratamento da psicose.

[12] NIFFINEGGER, André V. L. A oralidade na psicose: considerações clínicas de Marcel Czermak. 2019. (Artigo apresentado em conferência). https://escolalacanianabsb.com.br/a-oralidade-na-psicose-consideracoes-clinicas-de-m-czermak/

[13] (p 166,4)

[14] FREUD, Sigmund. Introdução ao narcissismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas, volume 12; tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 66-67.

[15] (167, 3 in fine)

Encontro #15
Encontro #16
Capítulo XVI, O sujeito e o Outro (I) – A Alienação

Neste capítulo, Lacan retoma a questão de que, se a psicanálise deve se constituir como uma ciência, deve-se partir da premissa de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Daí propor uma topologia cuja finalidade é dar conta da constituição do sujeito. É preciso lembrar que no capítulo anterior ele parte da constatação de que, pelo efeito da fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, com a ressalva de que nesse movimento, aí ele não persegue senão uma metade de si mesmo. Ele dirá, então, que o sujeito nasce no que, no campo do Outro, surge o significante e por esse fato mesmo ele se coagula em significante. No item I, então, ele primeiro acentua a repartição que constitui ao opor, em relação à entrada do inconsciente, os dois campos do sujeito e do Outro. O Outro, para ele, é o lugar em que se situa a cadeia de significantes que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito. E é também do lado desse Outro vivo, chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão. O que Lacan está dizendo aqui também é que o Outro preexiste ao sujeito, sendo algo dado pelo campo da linguagem, enquanto o sujeito não é dado, mas é algo a advir. Quanto à manifestação pulsional, se no plano biológico o instinto representa a totalidade da reprodução, a pulsão, sendo parcial, não representa no psiquismo a totalidade dessa função que Freud chama de Fortflanzung, isto é, da reprodução. Em outras palavras, no psiquismo não há nada pelo que o sujeito se pudesse situar como ser de macho ou ser de fêmea, só o fazendo por equivalentes – como atividade ou passividade – que estão longe de representar essa função exaustivamente. Isto quer dizer que as vias do que se deve fazer como homem ou como mulher são inteiramente abandonadas ao drama, ao roteiro que se coloca no campo do Outro. Lacan vai dizer que esse fazer-se como homem ou como mulher o ser humano tem sempre que aprender, peça por peça, do Outro. Ele está dizendo aqui que a sexualidade se instaura no campo do sujeito por uma via que é da falta. Nessa passagem do texto Lacan está dizendo que o Outro é a primeira causa do sujeito, sendo que este não é uma substância, mas o efeito do significante. Ele é representado por um significante e antes do surgimento do significante não existe sujeito. Mas o fato de não existir sujeito não quer dizer que não existe nada, porque pode existir um ser vivo marcado pela manifestação pulsional. Mas essa dialética pulsional se distingue fundamentalmente do que é da ordem do amor como do que é do bem do sujeito. Ele apresenta, então, no item 2 as operações da classificação do sujeito em sua dependência significante ao lugar do Outro.

Inicia o item 2 afirmando que a psicanálise nos lembra que a psicologia humana pertence a uma outra dimensão que não aquela que se dá no nível da reciprocidade com outros seres animados. No caso humano, o significante produzindo-se no campo do Outro faz surgir o sujeito de sua significação. Aqui os processos devem, certamente, ser articulados como circulares entre o sujeito e o Outro – do sujeito chamado ao Outro, ao sujeito pelo que ele viu a si mesmo aparecer no campo do Outro, do Outro que lá retorna. É um processo circular e dissimétrico. Lacan propõe a ilustração de suas idéias a partir do losango vetorial. Nesse losango, o V da metade inferior ilustra o que chamará de vel constituído pela primeira operação essencial em que se funda o sujeito, operação essa chamada por Lacan de alienação.

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É preciso que se diga que toda a questão da alienação pode ser entendida, como diz Graciela Brodsky, com a seguinte pergunta: o que se privilegia, o mesmo ou o outro? Segundo ela essa reflexão está presente em todas as referências sobre a alienação utilizadas por Lacan. A partir de Hegel, privilegia-se o ser, o “si mesmo”. A alienação é um momento do trajeto do espírito que passa por sua objetivação, no qual o sujeito se objetiva como outro, outro de si mesmo. Toda a dialética hegeliana implica em saber como essa alienação é superada, isto é, como superar essa alteridade e recuperar o “em si”. Ela diz também que talvez a melhor maneira de entender a alienação como conceito é pensá-la como fenômeno de alheamento. É nesse marco que Lacan se insere e ele vai situar, utilizando-se da teoria dos conjuntos da matemática, a alternativa clássica entre o ser e o Outro na alienação. Há no seu raciocínio a introdução de “uma coisa ou outra”. Há então 2 campos, o campo do Ser e o campo do Outro, como campo do sentido. Ser e sentido. Lacan, com isto, não abandona a idéia de que o sentido é produto do Outro, chegando a reduzi-lo a outro significante. A oposição, então, imposta pela alienação pode ser reduzida à escolha entre ser e o sentido. Essa idéia de escolha é nova, não faz parte da dialética clássica, foi Lacan quem a introduziu.

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Ele vai então criar o vel da alienação que se define por uma escolha cujas propriedades dependem do seguinte: que há, na reunião, um elemento que comporta que, qualquer que seja a escolha que se opere, há por consequência um nem um nem outro. A escolha aí é apenas a de saber se a gente pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso. No caso do esquema acima, se escolhemos o ser, o sujeito desaparece, ele nos escapa, cai no não-senso; se escolhemos o sentido, ele o sentido só subsiste decepado dessa parte de não-senso que é, falando propriamente, o que constitui, na realização do sujeito, o inconsciente. Em outros termos, é da natureza desse sentido, tal como ele vem a emergir no campo do Outro, ser, numa grande parte de seu campo, eclipsado pelo desaparecimento do ser induzido pela função mesma do significante. Para Lacan, trata-se de uma opção de pura perda, da qual ele dá o exemplo “a bolsa ou a vida”. Aparentemente, alguém pode escolher “ou bem a bolsa ou bem a vida”, mas só aparentemente, pois se escolhe a bolsa perde tudo; se escolhe a vida, resta uma vida podada, desprovida do que lhe dava valor. É uma opção de pura perda porque, seja qual for a escolha, perde-se.

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Como ele escreve o campo do sentido? Como o campo em que estão os significantes, a cadeia significante que é a única que pode produzir sentido. E como se nomeia o campo do ser? Lacan dirá que o campo do ser, tal como se apresenta na psicanálise, é o campo da hipóstase do sujeito (Graciela Brodsky). A hipóstase é um conceito grego utilizado por Lacan no começo do seu ensino como apoio para o conceito de alienação. Ele utiliza essa referência, por exemplo, no estádio do espelho, em que o sujeito se vê no espelho e se aliena nessa imagem, tomando-se por outro para sair da prematuração, caminho por meio do qual acaba por perder a si mesmo. Nesse movimento, o sujeito se aliena, se alheia. Ao tomar-se por outro, perde seu ser na imagem e nela permanece fixado, o que Lacan chama hipóstase do sujeito. Lacan utiliza no esquema o que seria o cartão de visita do sujeito: o “sou” do sujeito, isto é, o significante com que se aliena e que é a sua máxima identificação, o S1.

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Para Lacan, o sujeito entra no campo do Outro por meio desse significante, por meio da máxima hipóstase do sujeito. Esse S1 é um significante sem sentido, seu sentido advém de outro significante. Então o ponto de partida da alienação no Seminário 11 é que o dito primeiro já está ali, é o S1. No sofisma dos 3 prisioneiros, Lacan se refere a isso: parte da suposição de que o sujeito entra no campo do Outro com o S1 nas costas, com o disco cuja cor desconhece, com a mensagem da qual não sabe o texto, com esse dito primeiro que lhe é desconhecido. É com isso que ele se dirige ao campo do Outro em busca de sentido. E nesse encontro entre o significante da hipóstase do sujeito e o campo do Outro que se joga a alienação, pois é em seu movimento que o sujeito faz com que esse significante o represente para outro, isto é, para o campo do Outro. Lacan situa esse encontro na parte central do esquema e define a operação como uma união, ou seja, leva em conta os elementos comuns e não comuns de ambos os conjuntos, situando o S1 em sua interseção, que é o elemento comum aos dois conjuntos.

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Do lado direito, está o saber (S2). A questão aqui é: o que fica do lado do esquerdo, do lado do ser? No encontro, no próprio ato em que o sujeito se faz representar por um significante para outro significante, Lacan usa o esquema para demonstrar que se evidencia um vazio do lado do sujeito e do seu ser. Na verdade, o mecanismo da alienação está feito para enfatizar essa parte vazia (hachurada), isto é, o que não é o S1, o que não é a hipóstase do sujeito e que só se evidencia quandoi esse encontro com o Outro é produzido. Ao inserir na parte central o elemento comum S!, torna-se evidente que resta uma parte podada. O que essa parte vazia quer dizer?

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Todo conjunto é composto por elementos. Como S1 é um elemento tanto do conjunto “ser” quanto do conjunto “sentido”, ele se situa na intersecção. S2 é outro elemento do conjunto “sentido”. Além de elementos, todo conjunto tem o que se chama “partes”. Um conjunto é composto de partes e elementos. Há uma parte que faz parte de todo conjunto: o conjunto vazio. E é esse conjunto vazio, essa parte do ser do sujeito que não está hipostasiada a um significante, que ficou sem referência, aquela chamada por Lacan “sujeito barrado”.

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É como se alguém dissesse que o S é um ser do qual se extraiu o S!, isto é, o “sou” lhe está vedado, porque para o “sou”ele precisaria de S!.

Neste seminário, a alienação é pensada para demonstrar que no encontro com o sentido, com o campo do Outro, o que surge é o sujeito esvaziado de toda substância, de toda representação, incapaz de qualquer hipóstase. Um sujeito que é um lugar vazio. Esse sujeito perdeu tudo nessa direção ao Outro, não obteve o sentido que buscava e, além disso, perdeu o significante com o qual chegara: já não sabe quem é. Nesse seminário, a alienação parte do ser e se dirige ao Sentido. É buscando o sentido que se perdem o sentido e o ser. A direção é esta:

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Encontro #17
Encontro #18
Capítulo XVIII, Do sujeito suposto saber, da Díade Primeira e do Bem

Tópicos para debate

André V. L. Niffinegger

psicanalista e membro da ELP-Brasília

1o de outubro de 2020

§2 – [« autorizar-se de si-mesmo »]. Na experiência da formação do psicanalista, à insuficiência de critérios se substitui algo da ordem da cerimônia, traduzida pela simulação. Não há, para o psicanalista, nenhum além substancial que sirva de referência para fundar o exercício de sua função.

§3-4 – No entanto, ele obtém algo inestimável: a confiança do sujeito e os resultados dessa confiança pela via de certa técnica. O que significa essa confiança e em torno do que ela e a direção do tratamento giram ? Esse ponto pivô é o que designo « desejo do psicanalista».

[Fenomenologia da transferência]

[1]

§1 – A transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista. Dividi-la em tranferência e contratransferência é eludir aquilo de que se trata.

§2-4 – A transferência é um fenômeno essencial, ligado ao desejo como fenômeno nodal do ser humano. Foi perfeitamente articulado, bem antes de Freud, em O Banquete de Platão. O momento essencial que toca a questão da ação do analista é aquele em se diz que Sócrates nunca pretendeu saber nada além do que diz respeito a Eros, ao desejo. Platão precisou o lugar da transferência. Desde que haja o sujeito suposto saber (S.s.S.), há transferência.

(§5 – a organização dos psicanalistas como S.s.S.)

§6-7 – [Freud e a função do S.s.S.] Freud, enquanto vivo, ocupou o lugar do « apenas un », legítimo sujeito suposto saber a respeito do inconsciente. Não somente foi S.s.S., como de fato sabia, e nos deu esse saber indestrutível (no sentido de suportar uma interrogação jamais esgotada).

§9 – Quem pode se sentir plenamente investido desse S.s.S. ? Não é essa a questão. A questão é, primeiramente, saber em que o sujeito se baliza para se dirigir ao S.s.S. Cada vez que essa função incarna-se em quem quer que seja, analista ou não, a transferência está desde já fundada.

§12-14 – A psicanálise nos demonstra que, principalmente na fase inicial, o que mais limita a confidência do paciente e seu abandono à regra analítica (i.e. a associação livre) é a ameaça de que o psicanalista seja enganado, ou melhor, de que o analista será enganado se o paciente lhe der certos elementos.

§15-16 – Aquele que pode ser enganado, não deveria estar, com mais forte razão, sob a suspeita de poder simplesmente enganar-se ? É em torno desse enganar-se que está o ponto sutil que quero marcar. Admitindo-se que se suspeite que a análise possa ser um logro, por que algo se estanca em torno desse enganar-se ?

§19-20 – O que pode significar não querer desejar? Desejar comporta uma fase de defesa que o torna idêntico a não querer desejar. Não querer desejar é querer não desejar. O sujeito sabe que não querer desejar segue a lógica da banda de Moebius : ao percorrê-la retornará à superfície que a unifica.

§21 – É nesse ponto de encontro que o analista é esperado. Enquanto suposto saber, ele é suposto saber partir ao encontro do desejo inconsciente. Por isso, digo que o desejo do analista é o eixo que sustenta a inércia da demanda do paciente, i.e., a transferência.

§22 – Esse desejo só é articulável pela relação do desejo ao desejo. Essa relação é interna. O desejo do homem é o desejo do Outro. Se é só no nível do desejo do Outro que o homem pode reconhecer seu desejo, e enquanto desejo do Outro, não estará aí um ponto em que seu desejo jamais pode se reconhecer? A experiência nos mostra que o desejo do sujeito se constitui quando vemos estar em jogo toda uma cadeia significante no nível do desejo do Outro.

[2]

[Fórmulas a conservar como balizas]

§1 – A alienação está essencialmente vinculada à função da dupla de significantes (S1-S2).

§2 – Para bem entender a função do sujeito nessa articulação significante, devemos operar com dois, porque só com dois ele é isolável/definível na alienação. Se há três, o deslizamento torna-se circular.

§2 – O efeito de afânise que se produz sob um dos dois significantes vincula-se à definição de um conjunto de significantes. Conjunto de elementos tal que, se existem apenas dois, o fenômeno da alienação se produz, i.e., que o significante é o que representa o sujeito para o outro significante. Resultando que, no nível do outro significante, o sujeito desaparece.

[« Fort-da » como ilustração da operação de alienação]

§12 – [em referência a um texto criticado]: Apresenta-se ali o fort-da e tomam-no como exemplo de simbolização primordial. É um erro grosseiro, pois não é da oposição pura e simples do fort e do daque ele tira a força inaugural explicada por sua essência repetitiva. Tolice dizer que se trata de o sujeito se instituir numa função de domínio. Nos dois fonemas se encarnam os mecanismos propriamente de alienação (que se exprimem, em aparente paradoxo, no nível do fort).

§13 – Não há Dasein [existência, ser-aí] com o fort. Não há escolha. Se o pequeno sujeito pode se exercitar nesse jogo do fort-da, é que precisamente ele de modo algum se exercita, pois o sujeito não é capaz de apreender essa articulação radical. Ele se exercita com a ajuda do carretel, objeto a. Trata-se de uma alienação e não de um suposto domínio. Ora, a repetição indefinida do jogo fort-damanifesta claramente a vacilação radical do sujeito.

Encontro #19
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Ana Amélia

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